Para um dos principais delegados da operação, o foro privilegiado retira qualquer possibilidade, por menor que seja, de conclusão de casos envolvendo os detentores da regalia. Ele considera que há uma ausência de perspectivas de condenações em instâncias superiores.
O delegado da Polícia Federal Márcio Adriano Anselmo, o mais antigo em atividade na Lava-Jato, acredita que parte da classe política envolvida na criminalidade ainda está imune aos efeitos da investigação. “E tem nas mãos o poder de ditar as leis no país”, alerta ele, em entrevista ao Correio. “A Lava-Jato atingiu corruptores, agentes públicos e seus intermediários. Mas parte da classe política, grande responsável pela perpetuação desse esquema, ainda se encontra imune a seus efeitos. É preciso atingir esses agentes.”
O foro privilegiado, que permite que ministros, deputados e senadores só sejam julgados no Supremo Tribunal Federal (STF), atrapalha essa necessidade. “É só considerar a quantidade de condenações em primeira instância e a ausência de perspectiva de condenações em instâncias superiores”, observa. Para o delegado, não há chances de julgamentos em curto prazo no STF.
Aos 39 anos, Anselmo entrou no caso em junho de 2013. A missão era presidir um inquérito que vinha sendo levado de um lado para o outro sem solução em relação a quatro doleiros no Paraná, São Paulo e Brasília. Tudo acabou desvelando um amplo esquema de compra de apoio político baseado em arrecadação com grandes empresas fornecedoras de estatais. As primeiras prisões e buscas foram pedidas por ele, em janeiro de 2014, e executadas em 17 de março daquele ano.
Paranense de Cambé (PR), Anselmo gosta de teatro, música e gastronomia. A partir de agora, vai tentar novos ares na Corregedoria da PF, no Espírito Santo. A data da saída não foi definida. Ele já negou publicamente que sairia por interferências no caso.
Anselmo comandou outras grandes operações, como a Boi Barrica, que apurou crimes da família Sarney, mas foi anulada pelo STJ. Doutor em direito internacional pela USP, é autor do livro Lavagem de dinheiro e cooperação jurídica internacional. Em abril, ele lança a obra Investigação criminal e polícia judiciária. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o senhor via a Lava-Jato quando entrou no caso?
Tinha recém retornado de uma licença para cursar doutorado, numa época de reestruturação da então Delegacia de Repressão a Crimes Financeiros no Estado do Paraná. Era junho de 2013. O caso era uma investigação de crimes financeiros perpetrados por um doleiro já conhecido no mercado de Brasília, sem qualquer pretensão além disso. Doleiro esse que já tinha sido preso em flagrante e alvo de um processo criminal que prescreveu em segunda instância. Era mais uma investigação que se arrastava e que, com muito esforço e dedicação de uma equipe, pode ter um rumo diferente. Os horizontes começaram a se ampliar apenas com a expansão a outros grupos de operadores financeiros, alvos da primeira fase.
Qual o balanço que o senhor faz da Operação agora, três anos depois de se tornar pública?
A operação pode demonstrar, de maneira inequívoca, o ambiente de corrupção sistemática e institucionalizada que predomina ou predominava no país. Decisões políticas de grande impacto foram tomadas não pelo interesse público, mas, sim, pela possibilidade de um desvio maior ou menor de recursos, pelos interesses das grandes empresas do setor, etc. Da construção de uma refinaria ao gerenciamento de um programa de crédito consignado, tudo era visto como fonte de recursos para serem desviados.
O que pode e o que certamente vai acontecer com a Lava-Jato nos próximos três anos?
Não há como prever o que pode acontecer. Qualquer previsão na primeira fase teria falhado, assim como ao longo desses três anos. A Lava-Jato pode ser um divisor de águas no combate à corrupção no país ou pode ser mais do mesmo. Infelizmente, quando se observa até o momento, a Lava-Jato atingiu corruptores e agentes públicos e seus intermediários. Parte da classe política, grande responsável pela perpetuação desse esquema, ainda se encontra imune a seus efeitos. E tem nas mãos o poder de ditar as leis no país... É preciso atingir esses agentes.
Quais os riscos que a peração corre?
A operação corre riscos todos os dias. Veja agora a busca incessante pela anistia do caixa dois, que, na verdade, quer livrar toda a classe política envolvida dos seus efeitos, jogando todo o dinheiro da corrupção numa grande pizza.
A reação no Brasil terá o poder que teve na Itália para reverter os ganhos da Operação Mãos
Limpas? Por quê?
As forças políticas no Brasil já deram claros sinais dos seus interesses. Anistia a pseudo-caixa dois, restrições à prisão e à colaboração premiada, busca de controle da Polícia Federal, etc. Hoje, se fala em várias reformas, mas a reforma política, por exemplo, é deixada de lado.
O que certamente vai acontecer com o combate à criminalidade do colarinho branco daqui para frente? Haverá avanços ou
retrocessos?
Creio que é possível colocar a operação como um divisor de águas. Antes e depois da Lava-Jato. Infelizmente, avanços ou retrocessos estão à mercê da classe política, que detém o poder de alterar as leis a seu favor. A operação pode demonstrar que é possível, sim, a investigação de grandes crimes financeiros e que não existe crime perfeito. Veja-se a descoberta de um setor de pagamentos de propina numa grande empresa! O grande legado que pode ser deixado ao país é uma profunda reforma política.
É mesmo importante reduzir ou acabar com o foro privilegiado?
A operação demonstrou em diversas oportunidades o desespero de alguns atores em busca do foro privilegiado em contraste com a tentativa de evadir-se da primeira instância. Qual a razão disso? O foro privilegiado é um salvo conduto para a impunidade. É inaceitável que no Brasil tantas castas se perpetuem com esse privilégio, incompatível com o princípio republicano. O cenário que se vê no país hoje é, em grande parte, fruto do foro privilegiado. Após três anos de operação, não temos perspectiva, por menor que seja, de casos concluídos a curto prazo envolvendo essas autoridades. Enquanto uma denúncia criminal é recebida em primeira instância em dois ou três dias, leva dois ou três anos para ser recebida no Supremo Tribunal Federal (STF). A quantidade de autoridades que possuem foro privilegiado no STF hoje torna inviável a atuação dele, por exemplo, apesar do esforço pessoal de alguns ministros.
Na próxima terça-feira, alguns senadores tentarão colocar prioridade ao fim do foro privilegiado. Acha que esse
benefício vai continuar no Brasil pós-Lava Jato?
O foro privilegiado é uma garantia de impunidade que se arrasta no país. De um lado, temos parte do legislativo atuando em causa própria, visando escapar de uma eventual punição e, de outro, o povo, o real detentor do poder político numa democracia que não suporta mais pagar o preço da corrupção que assola o país. Como cidadão, espero que a vontade popular seja determinante nesse processo.
O foro privilegiado atrapalha atingir essa parte da classe política ainda imune?
Com certeza. É só considerar a quantidade de condenações em primeira instância e a ausência de perspectiva de condenações em instâncias superiores.
Que lições o senhor tira sobre o que deve ser feito para repisar as boas práticas da Lava-Jato e que lições tiraria de erros e caminhos não tão bons?
Uma operação como essa não aconteceria sem que as instituições públicas atuassem em colaboração. A partir do momento que uma instituição ou uma pessoa busca se apropriar dos resultados de um trabalho tão grande e tão complexo, fruto de tantos atores, em prol de si próprio ou de um órgão, o equilíbrio se perde. A Lava-Jato mostrou que é possível, sim, ter uma investigação criminal de qualidade. O que espera é que todas as instituições possam amadurecer após esse processo.
Quais os desafios vai ter na Corregedoria no Espírito Santo?
Vou mudar de área. Passei a vida inteira na área de lavagem de dinheiro e crimes financeiros. Agora, é uma coisa mais ampla. Todas as investigações passam pela Corregedoria.