12/06/2020 às 08h06min - Atualizada em 12/06/2020 às 08h06min

A maior aberração jurídica da história recente

Procuradora da República explica por que o Inquérito 4.781 é ilegal e como ele representa uma grande ameaça à liberdade e à democracia

Paulo Briguet
Brasil Sem Medo

Na tarde em que os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal discutirem o pedido de suspensão do Inquérito 4.781, mais conhecido como Inquérito das Fake News, o que estará em jogo é muito mais do que um simples procedimento da Alta Corte, mas o próprio futuro da liberdade de pensamento e expressão no Brasil. Se a maioria dos juízes do STF ignorar o pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, e decidir pela continuidade desse inquérito, não é apenas a situação de 29 cidadãos que estará comprometida, mas o coração da democracia brasileira, que são os direitos fundamentais do povo. É difícil saber o que acontecerá com o Brasil se esse procedimento kafkiano não for barrado imediatamente. Estaremos todos à mercê do humor e da conveniência de magistrados que podem, sob o menor pretexto, revogar a legalidade e a realidade em nome dos interesses do poder.

Para mostrar por que o Inquérito das Fake News — que, a bem da verdade, não deveria ser chamado de inquérito — é uma aberração jurídica e uma ameaça às liberdades democráticas, entrevistamos Bianca Araújo, procuradora da República no Rio de Janeiro e ex-delegada da Polícia Civil. Leiam a seguir a implacável análise de Dra. Bianca sobre o Inquérito 4.781:

AFRONTA AO ESTADO DE DIREITO
“No inquérito instaurado pelo STF, podem ser observadas várias ilegalidades. Em primeiro lugar, a flagrante violação ao sistema acusatório, que foi concebido para o Processo Penal Brasileiro. Por esse sistema, o juiz não pode investigar, mas apenas o Ministério Público e a polícia. Só o fato de ministros do Supremo estarem, de ofício, empreendendo investigações já seria uma afronta direta ao Estado de Direito e às disposições constitucionais e legais, por ferimento ao sistema acusatório. O requerimento foi instaurado sem requerimento do órgão de acusação. Tramita no STF para investigar sujeitos que não têm especial foro por prerrogativa de função.”
 

SEM ACESSO À INTEGRALIDADE DOS AUTOS
“Contrariando súmula do próprio STF, os investigados não tiveram acesso à integralidade dos autos. Também é um inquérito cujo objeto não delimita o aspecto criminoso do fato que vem sendo investigado, já que a veiculação de fake news não é crime algum no ordenamento jurídico brasileiro. Pelo pouco que podemos conhecer do inquérito, de plano não existe ali a indicação precisa do que seriam as fake news que se está investigando nem de qualquer conduta criminosa por parte das pessoas investigadas.”


FERINDO A LIBERDADE DE EXPRESSÃO
“Esse inquérito foi instaurado pelo ministro Dias Toffoli, que designou o ministro Alexandre de Moraes. Não houve distribuição, não houve sorteio — e isso fere o princípio da livre distribuição, que deveria nortear os processos judiciais. Outra ilegalidade é a determinação, de ofício, por parte do ministro Alexandre de Moraes, das diligências de busca e apreensão e afastamento de sigilo, sem que haja pedido dos órgãos de acusação, nem representação por parte da polícia. Materialmente, podemos dizer que a existência dessa investigação para apuração de condutas que, em tese, não são ilícitas, fere o princípio da liberdade de expressão.”


NECESSIDADE DE ARQUIVAMENTO
Só o fato de que esta investigação esteja sendo empreendida de forma absolutamente ilegal e inconstitucional viola direitos fundamentais previstos na Constituição. Esse inquérito já foi até mesmo objeto de arquivamento pela procuradora-geral da República anterior, Dra. Raquel Dodge. Em nosso sistema, o “dono” da acusação, o órgão responsável pela acusação, o Ministério Público, é quem exerce o múnus de arquivar e decidir sobre o cabimento de uma investigação. À Justiça, cabe apenas um juízo de homologação quanto à legalidade desse arquivamento. Se a Justiça não concorda com esse arquivamento, o máximo que ela pode fazer é remeter o auto da homologação para uma instância superior do próprio Ministério Público. Sendo a PGR a autoridade máxima dentro do Ministério Público Federal, não cabe à Justiça qualquer diligência subsequencial à manifestação pelo arquivamento por parte da PGR. Não cabe recurso a essa decisão. Caberia ao STF homologar o auto e arquivar o inquérito. Não obstante, o STF deu sequência ao inquérito.”


ABERRAÇÃO JURÍDICA
“Se o STF decidir levar adiante esse inquérito com tantas ilegalidades, a consequência natural seria a nulidade de pleno direito, ou seja, a invalidade de todos os atos já praticados no bojo desse inquérito, tais como as buscas e apreensões efetuadas e os afastamentos de sigilo. E essa declaração de invalidade, por sua vez, teria suas consequências, inclusive o eventual direito de indenização dos que se julgarem ofendidos. O plenário do STF deve julgar um pedido de suspensão desse inquérito nesta semana. No meu modo de ver, esse inquérito é a maior aberração jurídica na democracia brasileira pós-1988. Se ele prosseguir, mesmo com todas as ilegalidades, o que teremos é uma violação de direitos fundamentais. Esse inquérito se tornará um verdadeiro instrumento de perseguição e monitoramento por parte do Estado contra a liberdade de expressão de cidadãos que, em tese, não cometeram crime algum.”
 

O QUE SÃO “FAKE NEWS”?
“O perigo de se entender o conceito de ‘fake news’ como crime está na possibilidade de vulneração da liberdade de expressão fora dos limites que a Constituição dita, ou mesmo de manipulação do debate social por grupos ou setores da sociedade,  especialmente no contexto atual de forte influência política na movimentação para retribuição ou sanção, por parte do Estado, de condutas que se amoldem a tais conceitos, os quais são dotados de extrema vagueza ou ‘elasticidade’.

O norte da Constituição já deu o tom das limitações possíveis ao direito fundamental de liberdade de expressão, prevendo inclusive que de nenhuma maneira seria admitida a “censura prévia”, ou seja, o mecanismo de inibição aos exageros e irregularidades na manifestação do pensamento que a princípio foi eleito pela Constituição é o mecanismo de reparação (no âmbito cível), quando evidenciado prejuízo causado pelo exercício de manifestação do pensamento, ou a sanção penal em casos excecionais e específicos (como o caso de racismo ou de apologia ao nazismo, ou delitos contra a honra, por exemplo).

Não há um conceito jurídico de fake news que seja atualmente aceitável, e penso que tal conceito é de inviável criação em nossa conjuntura atual, onde pendem interesses diversos em monopolizar o fluxo de informações ou direcionar uma certa versão dos fatos. Não precisamos apelar a qualquer teoria da conspiração para concluir que a imprensa profissional perdeu espaço e credibilidade com o crescimento das mídias sociais e o alargamento de acesso à informação que foi permitido pelo advento da internet. Se é certo que nem tudo que está na internet é verdade, também é certo que a possibilidade de pesquisar a veracidade da informação veiculada na grande mídia por meio da internet é hoje uma realidade. Nesse contexto, qualquer movimento que vise sancionar manifestação de pensamento sob a pecha de fake news e que exclua a grande mídia como autor do fato irregular já é em si ilegítimo, pois abre-se um campo à reserva de mercado para a imprensa profissional. De outra parte, é notório que o movimento que visa sancionar fake news é dotado de forte carga política, outro viés que deslegitima e corrompe a iniciativa. Portanto, de qualquer ângulo que se examine, é autoritária qualquer tentativa de criminalização de ‘fake news’ ou ‘discurso de ódio’, mormente quando esses conceitos foram vulgarmente apropriados por setores sociais fortemente ideológicos/politizados e que lhes emprestam carga semântica de verdadeira dissonância, pois entende-se vulgarmente e por diversas vezes as fake news e o discurso de ódio como opiniões que desagradam. E criminalizar opiniões que desagradam é inadmissível em um contexto em que devemos prezar cada vez mais por segurança jurídica e respeito a direitos fundamentais.”

 
 

 


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