“Democracia”, junção das palavras demos (povo) e kratos (poder) para significar “governo do povo”, é um regime político que surgiu na Grécia, no século V a.C., e alargou a participação decisória para além da minoria (aristokratia) que, até então, costumava governar.
Essa cidadania democrática, de início, era restrita a uma elite (homens, filhos de pai e mãe atenienses, livres e maiores de 21 anos), mas, pouco a pouco, expandiu-se para, nas democracias modernas, após diversos movimentos pelo sufrágio universal, passar a incluir todos os cidadãos adultos.
Segundo Robert Alan Dahl, cientista político que teorizou sobre um sistema democrático perfeito, por ele denominado “poliarquia”, diversas são as condições necessárias para que os processos de escolha representem ao máximo a vontade das pessoas, entre elas, inexoravelmente, a liberdade de expressão e a garantia de acesso a fontes alternativas de informação. Sem esses pilares, não há democracia possível.
Na última eleição presidencial, por exemplo, sagrou-se eleito candidato praticamente sem tempo de TV (dos 12 minutos do horário eleitoral, a coligação do PSDB tinha 5 minutos e meio, a do PT quase 2 minutos e meio e Bolsonaro meros 8 segundos) e com quase nenhum recurso. Sua campanha, que custou pequena fração daquela despendida pelo adversário do segundo turno, foi capitaneada pelas carinhosamente denominadas “tias do zap”, senhoras (e senhores) de meia-idade que usam, diariamente, conhecido aplicativo de troca de mensagens.
Mas a reação veio a galope. Tramita na Câmara dos Deputados o PL 2.630/2020 “Lei das Fake News”, de autoria de senador de um dos partidos da fracassada coligação do PSDB e aprovado a toque de caixa no Senado Federal.
Entre as medidas, exigiam-se números de documento e de celular para cadastro em redes sociais e aplicativos de mensageiria, além de se impor limitações à quantidade de usuários em grupos e severas restrições ao encaminhamento de mensagens, especialmente “em período de propaganda eleitoral”. Verdadeira mordaça na “tia do zap”.
Adicionalmente, o PL 2.630/2020 define “desinformação” como sendo o conteúdo assim declarado pelos “verificadores de fatos independentes”, empresas que passarão, então, a ditar o que é verdade e o que é fake, e portanto, passível de criminalização e de censura.
Agora, imagina quem está por trás de algumas das principais agências de verificação de fatos (fact-checking) do Brasil?
Os veículos da mídia tradicional, claro! Apenas a título de exemplo, citam-se as agências “Fato ou fake” (do grupo Globo) e “UOL Confere” (do Universo Online). Bingo!
Além da questão acerca da isenção das entidades verificadoras, na qual, conforme apontado, somente alguém muito inocente acreditaria, ainda permanecem diversos problemas.
Por exemplo, como selecionar o que será checado, uma vez que, por óbvio, não é possível checar 100% do conteúdo circulante?
Como essa classificação vai impactar na redução do alcance das postagens ou nos resultados das buscas?
Por fim, mas não menos importante: mesmo a checagem mais bem intencionada e bem feita não é infalível e, como toda atividade humana, está sujeita a erros.
Ou seja, fora o nítido risco de viés, a própria atividade de checagem pode gerar desinformação.
Enfim, as pessoas precisam acordar, quanto antes, para os verdadeiros interesses por trás do PL 2.630/2020. Pois, no fundo, no fundo, não se trata de combater “fake news”, mas, sim, de amordaçar as “tias do zap”, de modo que as eleições não saiam, nunca mais, do script historicamente ditado pela mídia tradicional.
Como bem ensinou o finado Robert Dahl, democracia sem voz não é democracia. É fake democracy.
Regis Machado é Auditor do Tribunal de Contas da União (as opiniões do autor não constituem posicionamento institucional do TCU)