Ao observar os calendários de vacinação infantil de 2019 e 2020, nenhum imunizante atingiu a meta preconizada pelo Ministério da Saúde. É possível notar uma redução de cobertura desde pelo menos 2013, com piora acentuada em 2017, quando apenas uma vacina do calendário atingiu a meta. Nos últimos dois anos, também houve uma queda na cobertura de todo o país, saindo de 77,1%, em 2018, para 64,9%, em 2020, segundo dados do portal Datasus, do governo federal.
O presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), Juarez Cunha, explica que o problema na cobertura vacinal das campanhas de vacinação do Brasil não é novidade, mas pode ser intensificado com o discurso que nega a importância da imunização e espalha mentiras sobre o assunto. “Um discurso negacionista, que não seja bem claro a favor da vacinação, vai, com certeza, impactar negativamente, não só a campanha contra a covid-19, mas a campanha da gripe, que vem por aí, e a vacinação de rotina que tem de ser continuada”, afirma.
Antes da pandemia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia alertado e colocado a hesitação para vacinar entre as 10 principais ameaças à saúde pública. No Brasil, a regressão é vista claramente desde 2015. Juarez Cunha, que é pediatra, explica que existem três pontos determinantes em relação à recusa em receber a vacina: “São chamados de três Cs: confiança, complacência e conveniência”.
A complacência é vista pelos especialistas como o principal fator para se explicar uma baixa cobertura vacinal. “É resultado da falsa segurança passada por doenças que as pessoas não conhecem ou nunca viram. Com isso, as pessoas acham que não têm necessidade de serem vacinadas. Isso explicaria, por exemplo, o retorno do sarampo”, explica o presidente da SBIm. O sarampo foi eliminado no país em 2015, mas reapareceu em 2018 devido à baixa cobertura vacinal. O índice não é alcançado, no caso da primeira dose, desde 2017 e, desde 2013, no caso da segunda.
Outro determinante que influencia uma pessoa a não querer se vacinar é a confiança. “Uma das coisas que levam a baixas coberturas vacinais é o medo dos eventos adversos. No entanto, a confiança não diz respeito só ao produto. Você precisa ter confiança nos governantes, nas instituições, nos profissionais de saúde e na confiança na vacina”, afirma o médico. Cunha destaca que a falta de confiança da população no Programa Nacional de Imunização (PNI) cresceu durante a pandemia da covid-19, diante da desinformação e da polarização dos discursos de governantes.
“Todos os grupos antivacinas foram alimentados com a politização e a polarização do tema, e, cada vez mais, eles têm penetrado nas mídias sociais, onde, muitas vezes, não conseguimos contrapor essas informações erradas. Apesar das mídias sociais terem tido uma melhora no controle do conteúdo, muitos são atingidos pelas fake news ali”, diz o especialista.
O terceiro e último ponto que influencia na hesitação vacinal vista no mundo e no Brasil é a conveniência, que aborda, por exemplo, os horários de funcionamento dos postos que oferecem vacinas, a disponibilidade das doses dos imunizantes e dos insumos e os recursos humanos. “Nosso sistema público de saúde não tem sido valorizado e há um sucateamento da rede. Isso também pode ser um fator da baixa cobertura vacinal”, indica o pediatra.
Especialistas destacam que o calendário vacinal do país é completo e um dos melhores do mundo. No entanto, também é complexo para os próprios profissionais de saúde. Com isso, a parte da capacitação precisa ser constantemente atualizada. É o que destaca o epidemiologista e professor em saúde coletiva da Universidade de Brasília (UnB) Jonas Brant.
“O Brasil é o país que, provavelmente, tem um dos programas nacionais de imunização mais completos e capilarizados do mundo. No entanto, nos últimos anos, acabamos trazendo novos imunobiológicos para o calendário sem trabalhar a rede de profissionais. Hoje, quando olhamos a nossa rede, os profissionais que foram treinados e que fazem parte desse processo maior já estão no final de carreira. Tem sido investido muito pouco nesta formação que vai além da atenção primária, mas do entendimento do PNI como um todo”, avalia.
Outra falha, segundo o especialista, gira em torno dos investimentos na comunicação. “O volume de canais de comunicação que existia antigamente era pequeno, então a voz do Estado com um chamamento da população para uma campanha ganhava muita atenção. Hoje, com o volume de redes sociais, de comunicação que existe, essa mensagem perdeu o destaque. Então, há a necessidade de pensar novas estratégias de aproximação com a população, porque o programa de imunização sempre foi um dos principais vínculos da nossa rede de atenção primária com a sociedade”.
O Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos enviados pelo Correio. A pasta, entretanto, já admitiu anteriormente a baixa cobertura vacinal. Em outubro de 2020, a coordenadora-geral do Programa Nacional de Imunizações (PNI) do Ministério da Saúde, Francieli Fontana, reconheceu a queda da cobertura das vacinas no calendário infantil.
“Verificamos um decréscimo a partir de 2016 e a gente ainda não tem uma avaliação real do impacto da pandemia nas coberturas vacinais, mas acredita-se que vamos ter prejuízos devido a esse momento que estamos vivenciando”, analisou durante participação no Jornada Nacional de Imunizações. O decréscimo citado pela coordenadora é observado, na verdade, desde pelo menos 2013, ano em que sete das 15 vacinas indicadas no calendário infantil não bateram a meta. A partir de 2017, a situação ficou pior, com apenas uma vacina atingindo a meta (BCG).
“Em 2019, nós não atingimos a cobertura vacinal para nenhuma das vacinas preconizadas para população de crianças. É um dado bastante importante, que preocupa muito o Ministério da Saúde e deve preocupar todos os profissionais de saúde, para que a gente una esforços e trabalhe para ampliar essas coberturas vacinais”, diz Francieli Fontana.