A maior e mais bem-sucedida operação de combate à corrupção do Brasil recebeu seu golpe fatal nesta segunda-feira. A força-tarefa da Lava Jato no Ministério Público Federal (MPF) em Curitiba foi dissolvida neste dia 1.º, por decisão do procurador-geral da República, Augusto Aras, apesar de ele mesmo ter determinado anteriormente que o grupo continuaria trabalhando na configuração atual até outubro deste ano. As investigações até continuarão, mas bastante enfraquecidas: os procuradores serão incorporados ao Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) do MPF paranaense, mas apenas parte deles seguirá com os casos do petrolão.
Em sete anos de investigação do maior escândalo de corrupção da história do país, montado pelo governo petista com a participação de outros partidos e de empreiteiras para sangrar estatais e alimentar um projeto antidemocrático de poder, foram 130 denúncias contra 533 acusados, resultando em 278 condenações atingindo 174 pessoas, cujas penas, somadas, são de 2.611 anos. Os 209 acordos de colaboração e 17 acordos de leniência resultaram em compromissos para a devolução de R$ 15 bilhões, dos quais R$ 4,3 bilhões já retornaram aos cofres públicos ou da Petrobras. Se mais não houve, foi apenas porque os detentores de foro privilegiado têm tido a vida facilitada pela inaceitável lentidão tanto da PGR quanto do Supremo Tribunal Federal, responsável pelos julgamentos – até hoje, o Supremo só condenou três réus da Lava Jato.
O fim da força-tarefa passou a ser uma possibilidade real desde que Jair Bolsonaro escolheu Augusto Aras para chefiar a PGR, em setembro de 2019. As críticas de Aras à Lava Jato eram já bastante conhecidas, e certamente não eram ignoradas pelo presidente da República. Elas não só continuaram, mas também passaram a ser acompanhadas de atitudes de enfraquecimento da força-tarefa, como a intervenção para obter os dados levantados pela operação, no primeiro semestre de 2020. Em setembro do ano passado, Aras prorrogou a força-tarefa por apenas quatro meses, quando o costumeiro seria um ano; depois, estendeu sua duração até outubro, mas agora reverteu sua decisão, antecipando o fim que já se antevia.
Nunca uma operação de combate à corrupção havia conseguido mandar tantos peixes graúdos para a prisão. Nunca tantos partidos tiveram membros implicados nos esquemas. Os corruptos e seus aliados jamais assistiriam a isso passivamente Mas Aras chegou apenas para dar o golpe de misericórdia; a desconstrução da Lava Jato já vinha de muito antes. Não é para menos: os números, embora maiúsculos, não contam a história toda. Nunca uma operação de combate à corrupção havia conseguido mandar tantos peixes graúdos para a prisão – ex-governadores, parlamentares e ex-parlamentares, chefes de casas legislativas e, claro, um ex-presidente da República. Nunca tantos partidos tiveram membros implicados nos esquemas, prova de que a Lava Jato jamais teve o viés partidário que seus detratores tentaram lhe atribuir. Nunca houve tamanho apoio popular às investigações. Os corruptos e seus aliados jamais assistiriam a isso passivamente.
A reação ocorreu exatamente como na Itália do pós-Mãos Limpas, e de nada adiantaram os alertas dos membros da força-tarefa e do então juiz federal Sergio Moro. No campo político, a bancada da impunidade no Congresso Nacional patrocinou e aprovou projetos de lei para atrapalhar e amordaçar agentes públicos encarregados de investigar e julgar corruptos, como a Lei de Abuso de Autoridade e a desfiguração do pacote anticrime, e agora investe na redefinição de crimes de colarinho branco para reduzir penas ou restringir as circunstâncias em que políticos poderão ser responsabilizados.
No campo midiático, Moro e a força-tarefa – especialmente o então coordenador Deltan Dallagnol – foram alvo de um circo montado com a divulgação de supostas mensagens atribuídas a eles e outros procuradores, e ganhou força uma narrativa falsa sobre “abusos” cometidos pela Lava Jato sem que os patrocinadores desse discurso fossem capazes de apontar que “excessos” seriam esses, ou de comprovar que houve dolo naquelas ações mais controversas e que são passíveis de interpretação. No campo jurídico, o STF vem desmontando o trabalho bem feito ao anular sentenças proferidas sem irregularidade alguma, e está nas mãos da corte uma ação que pode destruir de vez a operação caso se entenda que Moro não agiu de forma isenta ao condenar o ex-presidente Lula. Tudo isso sem falar da perseguição aberta contra Dallagnol no Conselho Federal do Ministério Público, em processos movidos por políticos e ministros do STF irritados com o legítimo exercício da liberdade de expressão por parte do procurador.
O Congresso tinha acabado com o futuro do combate à corrupção. Aras acabou com o presente da Lava Jato. Está definitivamente criado o clima para que o Supremo destrua de vez o passado da operação, bastando que Kassio Nunes Marques – outra escolha de Jair Bolsonaro – também considere que Moro agiu com motivação política; seria uma conclusão absurda, que desconsideraria a montanha de provas acumuladas contra o petista no caso do tríplex do Guarujá (e nos outros processos que ainda correm nas várias instâncias da Justiça), mas que, a essa altura do campeonato, não é nada improvável.
E os abutres nem esperaram que o cadáver da Lava Jato esfriasse para atacar. O deputado que Bolsonaro escolheu para ser líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), em entrevista à rádio CBN na terça-feira, pediu uma CPI para investigar o que chamou de “crimes cometidos pela quadrilha da Lava Jato”, acusando, julgando e condenando com aquela desenvoltura de quem sabe que a impunidade dos corruptos tem tudo para prosperar. Com uma retórica que lembra mais um representante do petismo que o líder de um governo eleito na esteira do antipetismo, Barros ainda desfilou uma série de mentiras para denegrir a operação.
“Nunca teve prisão em segunda instância no Brasil. Só teve para prender o Lula e tirá-lo da eleição casuisticamente (...) A prisão em segunda instância foi um casuísmo que a Lava Jato construiu para tirar o Lula da eleição”, afirmou o deputado, que tem no currículo a relatoria da Lei de Abuso de Autoridade, uma aberração desenhada para permitir a retaliação de investigados, réus e condenados contra seus investigadores e julgadores. A afirmação, no entanto, está errada do começo ao fim.
A prisão após condenação em segunda instância é a norma histórica no Brasil, e continuou a ser praticada mesmo depois da Constituição de 1988. O tema tinha sido alvo de julgamento no Supremo em 1991, quando prevaleceu o relatório de Neri da Silveira, segundo o qual “mantida, por unanimidade, a sentença condenatória, contra a qual o réu apelara em liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo grau determina se expeça contra o réu”. Só em 2009 passou a valer a prisão apenas após o esgotamento de todos os recursos possíveis; em fevereiro de 2016 (sete meses antes de a Lava Jato oferecer a primeira denúncia contra Lula, e mais de um ano antes de o petista ser condenado por Moro) o Supremo retomou o entendimento histórico, derrubado mais uma vez em 2019. Portanto, o cumprimento da pena com a condenação por colegiado não só existiu como foi o padrão durante a maior parte da história recente do país.
E o que tirou Lula da eleição não foi sua prisão, mas a Lei da Ficha Limpa, de 2010, que torna inelegíveis os condenados por colegiados, acusados de crimes como os que levaram Lula à prisão. Ainda que na época de sua condenação pelo TRF-4 estivesse valendo o entendimento atual do STF sobre prisão em segunda instância e e Lula jamais tivesse passado um dia na cadeia, ele estaria fora do pleito de 2018. Ao falar em “casuísmo”, portanto, Barros promove uma enorme falsificação histórica com o objetivo de imputar intenções políticas à Lava Jato, fazendo sem pudor o jogo do petismo.
O fim da força-tarefa da Lava Jato é uma derrota para o Brasil não apenas pela importância das investigações do petrolão, doravante enfraquecidas, mas porque este é mais um ato da destruição do bom combate à corrupção no país. Com todo o arcabouço legal e jurídico que está sendo montado – Lei de Abuso de Autoridade, decisões do STF e de conselhos como o CNMP –, pode não tardar até que os corruptos estejam todos livres enquanto aqueles que agiram dentro da lei para colocar os ladrões na cadeia estejam no banco dos réus. Uma inversão que destruiria qualquer esperança de um Brasil sem corrupção.