20/02/2021 às 11h16min - Atualizada em 20/02/2021 às 11h16min

​A prisão de Daniel Silveira e o alcance da imunidade parlamentar

GAZETA DO POVO

 
Tudo que começa mal muito frequentemente continua mal e acaba mal. A observação se encaixa perfeitamente no inquérito das fake news, um abuso jurídico em todos os sentidos, aberto em março de 2019 por iniciativa do então presidente do STF Dias Toffoli sem alvo específico, sem fato específico, com seu relator – o ministro Alexandre de Moraes – designado a dedo em vez de sorteado, e no qual o Supremo é vítima, investigador, acusador e juiz. Algo assim só pode acabar degenerando em arbítrio, como já ocorreu no passado, quando a revista Crusoé e o site O Antagonista foram censurados, ou quando apoiadores do presidente Jair Bolsonaro foram alvos de operações e tiveram suspensos seus perfis em mídias sociais sem nem mesmo poder saber pelo que eram investigados. O mais novo caso de excessos cometidos dentro deste inquérito foi a prisão em flagrante, na noite de terça-feira, dia 16, do deputado federal Daniel Silveira (PSL-RJ) após a publicação de um vídeo bastante chocante, em que ele faz pesados e grotescos ataques a vários integrantes da corte suprema.
 
As controvérsias começam pelo fato de Moraes ter simplesmente omitido, em sua decisão de terça-feira, qualquer consideração a respeito da imunidade parlamentar garantida no caput do artigo 53 da Constituição: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”, afirma a Carta Magna, e o caso em tela trata exatamente da manifestação de opinião por parte de um parlamentar. Isso, por si só, já faz da prisão uma aberração jurídica, independentemente do teor daquela opinião. Por mais que recentemente tenha surgido, dentro da comunidade jurídica, um debate acerca da extensão da imunidade quando existe a intenção explícita de se cometer, por exemplo, um ataque à honra, a natureza desta imunidade parlamentar, dita “material”, é justamente a intenção de garantir um debate o mais robusto e desimpedido possível, ainda que às vezes isso ocorra de uma forma extremamente dura e muito pouco civilizada.
 
A prisão é uma violação da imunidade parlamentar por “opiniões, palavras e votos” consagrada pelo artigo 53 da Constituição
 
A importância da imunidade material é tal que ela permaneceu intocada até mesmo quando, em 2001, o Congresso alterou a outra imunidade parlamentar, dita “processual”. Se antes os parlamentares não podiam nem mesmo ser processados sem autorização dos pares, a partir de então estabeleceu-se a regra atual, que impõe determinadas condições para que um parlamentar deixe temporariamente de responder diante do STF por crimes cometidos após a diplomação. A Emenda Constitucional 35/2001, portanto, enviou um duplo sinal à sociedade: os parlamentares não são intocáveis, como se pairassem acima da lei, mas a proteção da sua liberdade de expressão por meio das opiniões, palavras e votos proferidos durante o mandato é essencial para o exercício da democracia.
 
Dito isso, não há a menor dúvida de que as palavras do deputado estão protegidas pela imunidade parlamentar, e Alexandre de Moraes se equivoca inclusive quando afirmou nesta quarta-feira, durante o julgamento em que o plenário da corte manteve a prisão, que “atentar contra as instituições, contra o Supremo, contra o Poder Judiciário, contra a democracia, contra o Estado de Direito não configura exercício da função parlamentar a invocar a imunidade constitucional do artigo 53, caput. As imunidades surgiram para a preservação do Estado de Direito”. Tal observação faz sentido no caso de atos concretos, mesmo quando cometidos por um parlamentar, mas não no caso de “opiniões, palavras e votos”.
 
Isso nos leva à questão seguinte: se Silveira tivesse usado os mesmíssimos termos do seu vídeo sem ter mandato parlamentar, ou se não existisse a imunidade garantida pelo artigo 53 da Constituição, ele teria cometido algum crime? Basta ouvir ou assistir aos quase 20 minutos para perceber que há, ali, com toda a certeza, injúria e calúnia dirigidas a vários dos ministros, com termos pesadíssimos, ou seja, os crimes contra a honra estariam configurados. Mas e o desrespeito aos artigos 17, 18, 22, 23 e 26 da Lei de Segurança Nacional, que Alexandre de Moraes disse existir? Novamente, a análise atenta do conteúdo não permite concluir que houve qualquer violação desse tipo. É verdade que Silveira faz uma defesa vergonhosa do AI-5, mas não defende a repetição hodierna desta medida de exceção, bem como não pleiteia nenhuma ruptura institucional, fechamento do Supremo, inviabilização do funcionamento do Judiciário ou algo parecido. Afirmar, por exemplo, que um ou os 11 ministros do Supremo são indignos do cargo, que usurpam funções de outros poderes e que por isso deveriam ser substituídos é parte do debate político, até porque já existe no ordenamento jurídico o meio para que isso ocorra.
Nada disso, no entanto, foi considerado no julgamento-relâmpago, de menos de uma hora, em que todos os demais dez ministros do STF concordaram com a decisão de Moraes e mantiveram a prisão de Silveira. Por mais desrespeitosos que tenham sido os termos usados por Silveira, e por mais que os ministros tenham se visto atingidos em sua honra e seu brio – uma indignação justa, dadas as acusações, xingamentos e palavras agressivas do deputado –, chega a ser difícil de entender que, entre os guardiões da Constituição, ali colocados para julgar sem paixão, não tenha surgido nenhuma voz em defesa enfática do artigo 53 da Carta Magna.
 
Ao menos, Moraes e seus colegas não ignoraram que, de acordo com o mesmo artigo 53, a prisão de Silveira ainda terá de receber o aval da Câmara dos Deputados. Isso estava previsto para ocorrer nesta quinta-feira, mas a sessão foi cancelada. Reverter a decisão do Supremo poderia ser visto como mero corporativismo de parlamentares que protegem uns aos outros, mas ao menos nesta situação a casa legislativa estaria demonstrando um entendimento mais correto da imunidade parlamentar que aquele demonstrado pelo plenário da corte. Ainda seria bem-vinda a reafirmação de que, no caso de Silveira, a interpretação correta do artigo 53 exige a conclusão de que o deputado não chegou a cometer crime.
Mas os deputados não podem, de forma alguma, se limitar a isso. Dizer que não houve crime não significa que Silveira deva sair impune. Seu caso exige a atuação firme do Conselho de Ética da Câmara, pois não há a menor dúvida de que se trata de quebra de decoro, ultrapassando em muito os limites de decência esperados de qualquer cidadão, quanto mais de um detentor de mandato público. Uma suspensão longa ou mesmo a cassação não seriam exagero algum; e, acima de tudo, seriam uma punição perfeitamente legal, ao contrário de tudo o que vem sendo feito neste abusivo inquérito das fake news, que agora levou à prisão de um parlamentar por suas opiniões, ainda que deploráveis.
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