O Complexo Integrado de Reciclagem do Distrito Federal (CIR-DF), inaugurado em dezembro de 2020, representa uma mudança na qualidade de vida das catadoras e catadores de materiais recicláveis e dá ao DF posição de vanguarda na América Latina quando se fala da gestão de resíduos.
O empreendimento ocupa uma área de 80 mil m², incluindo duas centrais de Triagem e Reciclagem (CTRs) e uma Central de Comercialização (CC), com investimentos de R$ 21 milhões. A iniciativa tem capacidade de gerar mais de 750 postos de trabalho.
A grandiosidade dos números não é a única característica que torna o CIR muito significativo, especialmente neste 8 de março, dia de luta pela igualdade de gênero. Do total de vagas, 450 estão ocupadas, sendo que 320 – ou 70% do total -, por mulheres.
Organizadas em cooperativas e associações, elas atuam na gestão compartilhada do espaço, junto à Secretaria do Meio Ambiente (Sema) e ao Serviço de Limpeza Urbana (SLU).
De 450 vagas no CIR, 70% são ocupadas por mulheres. Organizadas em cooperativas e associações, elas atuam na gestão compartilhada do espaço, junto à Sema e ao SLU | Foto: Divulgação/SLU
Para o titular da Sema, Sarney Filho, a presença das mulheres no processo de gestão é um diferencial importante na cadeia da reciclagem. “É um número muito expressivo, tanto nas mulheres que atuam na linha de produção, quanto no processo gerencial do CIR. Elas merecem destaque especial pelos resultados alcançados à frente dos empreendimentos e das conquistas”, diz.
No âmbito das organizações, elas também ocupam posição de liderança. Das 11 cooperativas atuantes no CIR, sete são presididas por mulheres, bem como a Central das Cooperativas de Materiais Recicláveis do DF (Centcoop). À frente da entidade, Aline Sousa da Silva, considera a construção do complexo uma grande vitória, depois de muita luta, na época em que o trabalho era realizado no maior lixão a céu aberto da América Latina, conhecido como Lixão da Estrutural.
Mãe de sete filhos, Aline começou na catação ainda na infância, junto com o pai. Morava no entorno, onde passava necessidades, e em 2002 veio participar de uma ocupação em Taguatinga Sul. Mas queria ficar perto da avó e do pai e, por isso, seguiu como eles, catando papeis e outros materiais, em carroças.
Aos 14, ela passou a ser beneficiária de projetos sociais voltados a combater o trabalho infantil, o que acabou formando uma mulher com consciência política e muita força de trabalho. Além do sonho de mudar a sua realidade e das demais pessoas com a vida parecida com a sua.
Entre o relacionamento que tem até hoje, o nascimento de um filho e outro, formações oferecidas por organismos internacionais, a ocupação de cargos em organizações sociais e no próprio Movimento Nacional de Catadoras e Catadores de Materiais Recicláveis, Aline foi se transformando na líder que é hoje, referência em todo o Brasil na gestão da cadeia da reciclagem.
“Sempre lutei por nossa dignidade e o CIR oferece essa condição, de mais renda e um trabalho em melhores condições. Era meu sonho vê-lo construído. E ainda sonho em ver mais trabalhadores e trabalhadoras organizados. Não queremos deixar ninguém de fora”, diz Aline.
Poder público
Na própria Sema, uma nova servidora tem muito a contar sobre a história do lixão. Rita Pereira Borges de Jesus, 28, foi nomeada para o cargo de gerente de Resíduos Sólidos menos de duas semanas atrás. Ela acredita que há muitos desafios a serem superados na nova tarefa e espera estar à sua altura, já que começa com a missão de tocar processos licitatórios que garantirão melhorias ao complexo.
Apesar da nova experiência, Rita tem uma vida inteira de relação com o que antes era chamado simplesmente de lixo e, por força de muita gente, inclusive ela, ganhou a importância que merece a partir da instituição da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), a Lei nº 12.305/10.
Filha dos piauienses Francisco Edilberto Laurindo de Jesus e Edite Pereira do Monte de Jesus, casados há 30 anos, ela nasceu no DF e se lembra de ter percorrido, junto aos pais e à irmã, quatro anos mais nova, praticamente todas as regiões administrativas, na tentativa de conseguir um lugar para morar e uma fonte de sobrevivência.
“Éramos nômades, íamos de invasão em invasão, de barraco em barraco. Muitas vezes, o aluguel era fechado e, quando o locatário via que havia crianças pequenas, desmanchava o combinado na hora”, relembra. Por volta dos anos 2000, um lugar, finalmente, deu régua e compasso à família inteira, a Vila Estrutural.
Naquela época, o lugar era violento, regido por uma espécie de lei da sobrevivência, onde chegavam poucas políticas públicas e tudo era arranjado – desde a água, que chegava em caminhões-pipa, até a energia, puxada por gambiarras chamadas de “gatos”.
Da infância em que ia em comboio para a escola, junto a outros moradores e brincava perto do posto policial, para aumentar a sensação de segurança, ela viu acontecer as mudanças na região e em sua própria vida e maneira de pensar. “Na infância, não percebi muita coisa. Mas, a partir da adolescência, comecei a entender o olhar diferente, a distância, o nojo, o tratamento que a gente recebia, sendo pessoas negras, catadores de material reciclável”, relembra.
Inaugurado em 2020, o Complexo Integrado de Reciclagem representou uma mudança na qualidade de vida das catadoras e catadores de materiais recicláveis do DF | Foto: Divulgação Sema
Filha da catação
A rotina de uma família que trabalha com a separação de resíduos não exclui as crianças. “Toda a família se envolve. Junta, separa, vigia o trabalho já realizado, guarda coisas em casa”. Por isso, de acordo com Rita, existe uma identidade comum a filhos e filhas de catadores, que terminam trabalhando no mesmo oficio, correndo os mesmos riscos de ter seus responsáveis acometidos por doenças e até mesmo de serem atropelados e mortos pelos caminhões.
Elas também dividem pequenas alegrias. “Na Estrutural, a gente se alimentou igualmente de uma área chamada por nós de ‘Carrefas’, onde os supermercados depositavam produtos avariados ou em vias de perder a validade. No Natal, comíamos os panetones quase vencidos. Na Páscoa, ovos quebrados. E, vez em quando, iogurtes, ovos, sardinha”, conta.
Rita conta que o trabalho dos pais na catação do Lixão, desativado em 2018, sustentou a família inteira e possibilitou que se formasse em Gestão de Recursos Humanos, como bolsista de uma universidade particular e fizesse uma pós-graduação em Gestão Pública. No meio tempo, recebeu formações voltadas a filhos de catadores, voltados à organização da categoria, como o Plano de Negócio Sustentável (PNS), do projeto Cataforte e o Pró-Catador, programa de ações de estímulo à inclusão produtiva dos catadores.
Já a irmã graduou-se em enfermagem. Ao lado do marido, Fernando Aleixo Borges de Jesus, com quem está há sete anos, a gestora continua morando na Vila Estrutural, em uma casa pertinho dos pais. “Dizer que sou filha de catadores e fruto da catação me representa muito, é uma expressão nata da minha vida e da qual sinto muito orgulho”.
Liderança
Lúcia Fernandes do Nascimento, 46, é catadora de material reciclável há quase 20 anos. Ela passou de uma catadora no Lixão da Estrutural para presidente da cooperativa Corace e da Associação Vencendo os Obstáculos. “Hoje faço parte de uma cooperativa representada praticamente por mulheres. No CIR a gente trabalha de forma mais fácil, em um galpão organizado, mas já enfrentou muitas lutas e dificuldades pra chegar até aqui e ser liderança de uma cooperativa, sendo mulher, mãe de família que carrega a casa, que sustenta os filhos”.
Ela diz que se sente muito honrada e orgulhosa por ser catadora. “Não tenho vergonha da categoria que represento. Nela ganhei dignidade de sustentar os meus filhos, de construir uma casa apenas vivendo da catação. Então, hoje me sinto guerreira, me sinto orgulhosa e, como mulher, sei que a minha força não vem só de mim, vem de Deus, mas sei que através da minha força muitas mulheres seguem em frente”, afirma.
Zilda Fernandes de Souza veio de Minas Gerais para o DF e lembra que ser catadora no Lixão da Estrutural, na época, foi o único meio de sobrevivência que encontrou. Mas a sua história de vida foi se transformando. “De lá pra cá eu entrei em uma cooperativa, na qual fui tesoureira, secretária e hoje estou de presidente já no segundo mandato”.
Antigamente, relembra, muita gente perguntava se não tinha vergonha de dizer que trabalhava com lixo. “E eu respondia pra eles que eu não tinha vergonha, tenho orgulho de trabalhar com a reciclagem. Até hoje tiro o meu sustento é da reciclagem”, conclui.
CIR
O Governo do Distrito Federal (GDF) vai executar este ano três projetos para a compra de equipamentos para o CIR. De acordo com o coordenador de Implementação da Política de Resíduos Sólidos da Sema, Glauco Amorim da Cruz, os novos equipamentos vão garantir, além de melhores condições de trabalho, maior agregação de valor aos materiais recicláveis, proporcionando valorização técnica e econômica aos materiais, e, principalmente, o aumento da renda dos cerca de 500 trabalhadores que já atuam no local.
Para Sarney Filho, o CIR representa o começo de uma nova era, em que o GDF consolida uma nova maneira de tratar os resíduos sólidos, cuidando ao mesmo tempo do meio ambiente e do social. “Os novos investimentos vão agregar mais valor e proporcionar elevação da renda dos catadores”.
As centrais de triagem, de 2,8 mil m² cada uma, recebem os resíduos da coleta seletiva. Nelas, o material é separado, classificado, pesado, prensado e transportado para a central de comercialização, onde ocorrem o beneficiamento, estocagem e comercialização.
Já a Central de Comercialização de Materiais Recicláveis recebe o material pré-selecionado para beneficiamento dos materiais advindos tanto das centrais de triagem quanto das demais cooperativas de catadores do DF pertencentes à rede Centcoop-DF.