12/07/2022 às 07h36min - Atualizada em 12/07/2022 às 07h36min

Grilagem avança sobre parque ecológico e ameaça progresso de cidade

Cerca de 45 casas de alvenaria foram erguidas em área próxima à Quadra 108 do Setor Habitacional Pôr do Sol, localizada dentro da Arie JK

No caminho de terra até a Quadra 108 do Setor Habitacional Pôr do Sol, chama a atenção a quantidade de placas feitas à mão com a frase “vende-se”. Entre pilhas de tijolos e restos de vegetação queimada, estão construções de alvenaria – duas já habitadas – que marcam o início da devastação da Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Juscelino Kubitschek (Arie JK), morada de afluentes do Rio Descoberto. Em menos de 60 dias, o local viu brotar, no meio do Cerrado, pelo menos 45 edificações. 
 
Sob a sombra de torres recém-erguidas de distribuição de energia, foi flagrada durante a semana, a ação de grileiros no local. Notou-se, ainda, como a exploração desenfreada de terras públicas pode afetar o desenvolvimento da região que já foi considerada, ao lado do Sol Nascente, uma das maiores favelas do Brasil.
 
Invasores aproveitam-se da situação de pobreza na região, tomam as terras para si, e não aceitam devolvê-las. Em conversas com lideranças locais, é unânime a aflição diante das constantes ameaças de morte; alguns, porém, desafiam a lei do silêncio que impera no lugar. “Vivo com medo, mas não vou me acovardar e não fazer nada, ao ver o rio [Melchior] sendo destruído”, conta um líder da região, que pediu para não ser identificado. 
 
A cerca de 400 metros da área devastada, corre o Rio Melchior. Divisa entre Samambaia e Ceilândia, o corpo d’água é objeto de diversas campanhas de preservação promovidas por ambientalistas e políticos. Apenas em 2021, a Companhia de Saneamento Ambiental do Distrito Federal (Caesb) registrou três rompimentos em adutoras de duas estações de tratamento (ETE) do riacho – as ETEs Melchior e Samambaia. 
 
Moradores da região relatam que, no início do ano passado, época do rompimento, pedaços grandes da tubulação utilizada para transporte de esgoto chegaram a cair no rio. Ainda com obras de manutenção em andamento (veja fotos acima), os técnicos da Caesb precisarão reparar o encanamento subterrâneo sob a população que se acomoda logo acima, na área invadida. Ou seja, a grilagem pode comprometer a melhoria de um serviço público essencial, que é a prestação de água potável à comunidade.
“Em janeiro havia duas casas no local. Como ninguém se manifestou, de 15 de abril para cá, construíram o restante. Já tiraram a vegetação e começaram a fazer o loteamento”, explica outro morador do Pôr do Sol.
 
Distribuídas em terrenos de 150 m², as casas de alvenaria – vendidas entre R$ 15 mil e R$ 20 mil – têm apenas um cômodo, do tipo “caixa de fósforo” (veja fotos acima). De acordo com o artigo 106 do Código de Obras e Edificações (COE) do Distrito Federal, as unidades residenciais devem ser compostas de, no mínimo, dormitório, sala de estar, cozinha, área de serviço e banheiro.
 
“Eles chegam com uma conversa de que aquele terreno pertence a uma chácara antiga de um parente. Então, falam para que tomem conta dessa área e dão ajuda de custo para construir um barraco”, conta um vizinho da região, que também foi ameaçado de morte diversas vezes. “Se alguém falar [sobre a atividade de grilagem], dizem que ‘não vai dar bom'”, narra.
 
Importância da Arie JK
 
Segundo o Instituto Brasília Ambiental (Ibram), Área de Relevante Interesse Ecológico (Arie) é uma unidade de conservação de uso sustentável que possui características naturais e geralmente abriga exemplares raros de fauna e flora. É um território de pequena extensão, que exige cuidados especiais de proteção do poder público. Entre seus principais objetivos, constam a manutenção dos ecossistemas naturais, de importância regional ou local, e a regulação do uso admissível, de modo a compatibilizá-lo com a conservação da natureza.
 
De acordo com a Lei nº 1.002, de 2 de janeiro de 1996, a instalação e o funcionamento da Arie JK são regidos pelas legislações vigentes em âmbito ambiental e agrícola. As diretrizes estabelecidas incluem manejo e recuperação das matas ciliares, assim como reflorestamento das áreas degradadas. Há, ainda, a proteção das nascentes e do perímetro de drenagem dos cursos de água, de forma a disciplinar a recepção de efluentes sanitários, águas servidas e pluviais, visando à recuperação da qualidade de suas águas.
 
Raio-X do Pôr do Sol
 
Na última quarta-feira (6/7), a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) publicou o diagnóstico comparativo dos aspectos domiciliares e socioeconômicos das 33 regiões administrativas (RAs) do Distrito Federal. O estudo faz parte da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad) 2021 por Unidade de Planejamento Territorial (UPT).
 
Segundo os dados divulgados, a Região Administrativa do Pôr do Sol/Sol Nascente, criada em 2019, possui população de 93.217 pessoas e área de 4.049,17 hectares. Os moradores da 32ª RA do DF recebem, em média, R$ 1.578,78 de remuneração por trabalho principal.
 
Ainda de acordo com a Codeplan, a RA é composta por dois setores habitacionais distintos (Sol Nascente e Pôr do Sol), que surgiram como expansão da cidade de Ceilândia. O Setor Sol Nascente começou a ser ocupado de maneira irregular nos anos de 1990, com aproximadamente 80 moradias, a princípio.
 
O processo de ocupação deu-se de forma contínua e acelerada, com condições mínimas de infraestrutura. Somente em 2008, mediante a sanção da Lei Complementar nº 785, ambos os territórios que hoje compõem a região foram reconhecidos como setores habitacionais de Ceilândia, e transformados em Áreas de Regularização de Interesse Social.
 
O que dizem os órgãos responsáveis pelo cuidado da área
Administração Regional do Pôr do Sol/Sol Nascente pontuou que está ciente do caso e que já encaminhou um ofício para o órgão competente de fiscalização (DF Legal). Já Secretaria DF Legal emitiu comunicado anunciando que a área está sob responsabilidade do Instituto Brasília Ambiental (Ibram).
 
O Ibram, por sua vez, informou que monitora a Arie JK e confirmou que “há locais com parcelamento irregular do solo, cujos usos e finalidades não condizem com o plano de manejo”. Veja a nota do órgão, na íntegra: 
 
“O Instituto Brasília Ambiental monitora a Área de Relevante Interesse Ecológico Parque Juscelino Kubitschek e fiscaliza a região. Há locais com parcelamento irregular do solo, cujos usos e finalidades não condizem com o plano de manejo estabelecido para esta Unidade de Conservação (UC).
 
De acordo com a Instrução Normativa nº 3, de 22 de janeiro de 2021, estão previstas nesses locais ações prioritárias como desconstituição de parcelamento de solo e de ocupações irregulares, recuperação de áreas degradadas, entre outras medidas. A Arie Parque JK é uma UC de Uso Sustentável instituída pela Lei nº 1.002, de 2 de janeiro de 1996.
 
A região onde ela está inserida se configura no maior conglomerado urbano do Distrito Federal (30% da população total do Distrito Federal) e em contínuo crescimento populacional (Codeplan, 2019). A região possui importantes áreas, como a Área Rural Remanescente do Núcleo Rural de Taguatinga, centenas de nascentes, a bacia hidrográfica do Ribeirão Taguatinga (sub-bacia da bacia do Rio Descoberto), diversos sítios arqueológicos, um campo de murundus.
 
Além disso, a ARIE Parque JK é um importante remanescente do bioma Cerrado no DF. Esta, assim como as demais UCs do DF, é de suma importância pela sua rica biodiversidade de fauna e flora e pelo abastecimento de água para parte da população do Distrito Federal. Também é uma importante área para a prática da agricultura e pecuária, atividade responsável pelo fornecimento de alimentos para o Distrito Federal.”
 
A Delegacia do Meio Ambiente (Dema), da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), também foi procurada, mas não respondeu às perguntas enviadas.

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