19/11/2022 às 06h48min - Atualizada em 19/11/2022 às 06h48min

Novo governo passa por crise de credibilidade antes mesmo da posse

Gastança prevista na PEC e falas de Lula contra o mercado causam tempestade perfeita e abalam até aliados do presidente eleito. Arminio Fraga, que apoiou campanha do petista, diz ao Correio haver preocupação com a piora do quadro fiscal

​(crédito: Ed Alves/CB/D.A Press)

Antes mesmo de tomar posse, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já enfrenta a primeira crise de credibilidade junto ao mercado financeiro e aos integrantes da frente ampla, que ajudaram o petista a vencer o presidente Jair Bolsonaro (PL) nas urnas em 30 de outubro. Após a entrega da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição ao Congresso, na noite de quarta-feira, a reação negativa do mercado foi imediata, porque o texto ficou pior do que o esperado.

A PEC da Transição prevê R$ 198 bilhões de despesas fora do teto de gastos no Orçamento de 2023, sem contrapartidas de cortes de despesas. Na proposta, o governo exclui da regra do teto os R$ 175 bilhões previstos para o Bolsa Família de R$ 600 mais os R$ 150 adicionais para cada criança com até 6 anos e ainda inclui outros R$ 23 bilhões para investimentos, que não estão muito bem especificados. Vale lembrar que R$ 105 bilhões do auxílio já estavam previstos na proposta orçamentária.

Analistas lembram que essa artimanha contábil é parecida com a que vinha sendo feita pelo atual governo, que mudou a Constituição várias vezes para gastar cada vez mais, a fim de agradar aliados, sem justificativas ou compromissos de corte de gastos. Um dos exemplos foi a PEC dos Precatórios, que jogou para debaixo do tapete dezenas de bilhões de uma dívida judicial que pode ficar impagável no futuro — uma pedalada fiscal sem precedentes — e antecipou a mudança do cálculo do limite do teto, a fim de criar um espaço de pouco mais de R$ 100 bilhões no teto do Orçamento de 2022.

Outra medida foi a PEC Kamikaze, que criou um estado de emergência inexistente para abrir espaço fiscal à gastança de mais R$ 41,2 bilhões em benesses em pleno ano eleitoral, além da ampliação do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600.

Conforme levantamento feito pelo economista Braulio Borges, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), para a BBC News, os gastos do governo atual acima do teto somam R$ 794,9 bilhões.

Tanto Lula quanto Bolsonaro prometeram o auxílio de R$ 600 para as famílias mais pobres, e o mercado estava esperando uma licença para gastar mais em 2023, o chamado waiver. Mas o tamanho do novo rombo, de quase R$ 200 bilhões, assustou.

Não à toa, após a divulgação da PEC, que não apontou o prazo para o fim dessa gastança fora do teto, a reação do mercado refletiu a desconfiança no governo, marcando o fim da curta lua de mel com o petista.

E, para piorar, o presidente eleito escorregou em suas declarações na COP27, ao menosprezar a reação do mercado. "Se cair a Bolsa e aumentar o dólar, paciência. Isso não acontece por conta de pessoas sérias, mas por conta de especuladores", disparou Lula. O comentário reverberou no mercado: o dólar disparou para mais de R$ 5,50 e a Bolsa teve queda, de mais de 2%, na manhã de ontem.

Na sequência, economistas renomados e ex-integrantes de governos tucanos publicaram uma carta aberta ao presidente eleito, que ignorou o fato de que bancos e gestoras estão entre os principais detentores dos títulos da dívida pública.

Na carta, assinada pelo ex-presidente do Banco Central Arminio Fraga, o ex-presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) Edmar Bacha, e o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, os economistas defenderam a responsabilidade fiscal, mas admitiram a necessidade do combate à pobreza. Apontaram que o desafio maior "é tomar providências que não criem problemas maiores do que os que precisam ser resolvidos".

Em entrevista ao Correio, Fraga disse que o motivo da carta é a preocupação com o agravamento do quadro fiscal e a sensação de que o caminho que o novo governo está tomando não é em direção ao centro. "Os indícios que se tem, até agora, são preocupantes. O quadro inspira cuidado, e nossa intenção foi construir uma carta construtiva", afirmou. "Havia a esperança, pelo menos minha, de que o presidente Lula voltaria ao modelo de política econômica do primeiro mandato. E, até o momento, não pareceu o caso, e esse é o pano de fundo."

A frustração no mercado e de apoiadores com o novo governo é crescente porque, na equipe de transição, apesar de nomes respeitados, como André Lara Resende e Pérsio Arida, conhecidos como os pais do Plano Real, ainda há muitos petistas cotados para comandar o Ministério da Fazenda que indicam retrocessos na área econômica. Um deles é o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, que, ontem, renunciou ao cargo de voluntário da equipe de transição. Após a renúncia, a queda da Bolsa diminuiu e a alta do dólar deu uma atenuada.

O vice-presidente eleito Geraldo Alckmin (PSB), coordenador da equipe de transição, precisou colocar água na fervura ao assegurar que o governo fará cortes, começando com a revisão de todos os contratos. "Lula tem compromisso com a austeridade fiscal", garantiu Alckmin, em entrevista à GloboNews.

As críticas, porém, não diminuem. A economista e advogada Elena Landau, cotada para ser ministra do novo governo, não viu com bons olhos os nomes de integrantes da equipe, principalmente na área de energia. Ela apelidou a PEC da Transição de "PEC do Precipício", nome já incorporado por analistas de mercado.

Aliados fora
As declarações de Lula na COP27 provocaram mais nervosismo nos agentes financeiros porque está deixando aliados de fora das primeiras decisões da equipe de transição e, possivelmente, do governo, de acordo com Julio Hegedus, economista-chefe da Mirae Asset. "O mercado só quer previsibilidade. Mas o presidente eleito está criando muito ruído, em vez de tentar tranquilizar os agentes financeiros, que têm um trauma dos ruídos que Bolsonaro gerava todo dia", comparou.

O especialista em contas públicas Gabriel Leal de Barros, sócio e economista-chefe da Ryo Asset, disse que "a PEC é muito ruim, e o erro do Bolsonaro não justifica erros do novo governo". Segundo ele, com apenas três medidas — reforma administrativa, fusão das políticas sociais e redesenho do abono salarial — seria possível reduzir as despesas em R$ 700 bilhões nos próximos 10 anos, abrindo espaço de sobra no Orçamento para as promessas de campanha, sem prejudicar as contas públicas.

Juliana Damasceno, especialista em contas públicas da Tendências Consultoria, lembrou, ainda, que, tanto Lula quanto Bolsonaro não teriam como fugir do aumento de gastos com o auxílio de R$ 600 em 2023, mas o maior problema da PEC é a falta de contrapartida para os quase R$ 200 bilhões extrateto. Ela destacou que a proposta também não endereça a questão do financiamento do programa e, como não há contrapartida para a expansão dos gastos, a despesa ficará desancorada, aumentando a dívida pública. "Além disso, a PEC abre um espaço maior do que o necessário para bancar o auxílio de R$ 600."


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