O amadurecimento da democracia brasileira tem um marco neste domingo (1º/1), com mais uma alternância de poder entre grupos políticos opostos que disputaram as eleições de 2022. O petista Luiz Inácio Lula da Silva, de 77 anos, o primeiro brasileiro a ser eleito três vezes para chefiar o Executivo federal, vai tomar posse como o 39º presidente da República, no que deverá ser o maior desafio de suas quase cinco décadas de vida pública.
Mesmo tendo vencido as eleições em segundo turno com o maior número de votos que um candidato à Presidência já recebeu (60,3 milhões), Lula registrou uma vantagem pequena em relação a seu adversário (50,9% a 49,10% dos votos válidos) e é visto como um vilão por grande parte dos que preferiram Jair Bolsonaro (PL). Além de administrar um país de dimensões continentais e com uma das maiores desigualdades sociais do mundo, Lula e seus aliados terão que trabalhar muito para pacificar um Brasil dividido.
Frustrado em sua tentativa de reeleição, Jair Bolsonaro (PL) fez questão de transformar a campanha em uma “luta do bem contra o mal” e sequer estará presente em Brasília neste domingo para passar a faixa presidencial a seu sucessor (na 11ª vez que isso acontece desde 1910, quando o governo Hermes da Fonseca criou o adereço), pois deixou o país na última sexta (30/12/22) rumo aos Estados Unidos.
As campanhas de Lula e Bolsonaro foram marcadas por ataques. Enquanto o ex-presidente repetia “presidiário” e “mentiroso” ao se referir ao petista, Lula chamava Bolsonaro de “negacionista” e “fascista”. Essa polarização se repete entre os apoiadores dos dois lados.
Como sequela da disputa presidencial mais acirrada e polarizada da história brasileira, parte considerável dos eleitores de Bolsonaro não aceita até agora o resultado das eleições e grupos radicalizados impõem um clima tenso ao país desde a vitória de Lula, em 30 de outubro do ano passado.
A revolta começou com fechamento de rodovias, seguiu por dois meses com acampamentos em frente a quartéis Brasil afora pedindo intervenção militar e culminou com ameaças terroristas em Brasília, que aumentaram em muito a preocupação com a segurança para a posse e chegaram a amedrontar parte da militância lulista.
Eventos da posse começam às 10h
A confiança dos lulistas, porém, venceu o medo de confrontos e os organizadores da posse esperam que até 300 mil pessoas participem das festividades, que incluem, além do protocolo oficial, apresentações artísticas gratuitas que começam às 10h e devem entrar pela madrugada de segunda.
Caravanas de apoiadores de Lula estão chegando a Brasília desde o meio da semana passada, de avião, ônibus e carro, o que levou o setor hoteleiro da capital a uma ocupação próxima dos 100%. Além disso, haverá dezenas de delegações estrangeiras presentes, além de governadores de Estados, que viajam a Brasília após suas próprias posses, que ocorrem nesta manhã.
A cerimônia política está marcada para começar 14h20, com o desfile do presidente eleito de carro (ainda não se sabe se aberto) pela Esplanada dos Ministérios, seguida pela posse, no Congresso Nacional, às 15h, e pela simbólica subida da rampa do Palácio do Planalto, às 16h20.
Um político analógico na era digital
Para enfrentar seu novo desafio no quarto andar do Palácio do Planalto, o presidente Lula terá de se reinventar e adaptar sua maneira de fazer política a novos tempos, nos quais a arena pública de debate foi ampliada para as redes sociais e as cobranças chegam bem mais rápido. Em discurso feito na última semana, quando terminou de escalar seu ministério, o novo presidente indicou que está disposto a isso, mas só o dia a dia no governo vai mostrar se ele e seus aliados serão capazes de se tornar políticos da era digital.
Ao se pensar em estratégia digital, é impossível não comparar Lula com Bolsonaro, que construiu sua candidatura, em 2018 e em 2022, como fenômeno nas redes e também governou fazendo anúncios, afagando apoiadores e criticando adversários em lives e em sites como Twitter e Instagram.
Para a cientista política Maria Carolina Lopes, especialista em accountability e comunicação digital, porém, é um equívoco pensar que ser um governo aberto do ponto de vista digital é o presidente estar sempre atento às redes e participando de grupos em aplicativos como WhatsApp e Telegram. “Sobretudo quando o governante e o governo se engajam só com grupos de apoiadores, de pessoas que pensam como ele”.
“Um presidente que não passa tanto tempo assim nas redes sociais, mas que busca no seu governo criar ferramentas pra ouvir vários setores da sociedade de forma plural pode ter um governo, do ponto de vista da accountability [prática de gestão que significa ouvir demandas e prestar contas], muito mais aberto usando as redes sociais do que um governo que não faz isso”, afirma a especialista.
Maria Carolina avalia ainda que o governo de Lula precisa modernizar a comunicação – em comparação com o que o PT tem feito historicamente – do ponto de vista do conteúdo. “Sabemos que, mesmo tendo ganhado a eleição, o PT e o Lula ainda tem uma comunicação muito mediada, onde falta espontaneidade, que é um tipo de conteúdo que funciona melhor para as redes”, afirma ela.
Ela alerta para práticas utilizadas nos governos anteriores do partido. “Há figuras na comunicação do PT que estão sempre vigiando o que é postado e deixam tudo engessado, atrapalham essa relação de governo e sociedade, porque a sociedade nem sempre reconhece aquele conteúdo como original. E uma forma de resolver é encarando isso, é fazer autocrítica e perceber que há estratégias melhores. Mas acredito que há no novo governo pessoas atentas a isso e que não vão deixar de ouvir comunicadores como [o deputado federal reeleito] André Janones“.
Por fim, a cientista política afirma que o governo precisa ter boas estratégias para lidar com a mídia tradicional. “Reconhecer imprensa como inimiga e se virar de costas, focando só na imprensa amiga e nos blogs, como fizeram com o governo Dilma, não é uma boa estratégia. O melhor é que, mesmo que a imprensa seja dura com o governo, se crie canais de interlocução. Senão, quem perde é o governo”, conclui Maria Carolina Lopes.
Trajetória mutante
Exposto a inúmeros desafios desde que entrou na vida pública, ao chegar à presidência do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC paulista, em 1975, Lula já demonstrou sua capacidade de se reinventar várias vezes na história recente do país e já assumiu tantos papéis políticos que pode se dizer que há “Lulas” diferentes para cada geração e que a visão que os brasileiros têm dele é mutante.
Ele já foi o sindicalista radical que desafiou a ditadura – e foi preso por isso. Já foi o candidato de uma esquerda que se recusava a fazer concessões e sempre morria na praia nas eleições presidenciais. Já foi o presidente que deixou o cargo com popularidade de 87% após amenizar o discurso e focar suas gestões na redução da pobreza. E já foi o herói que virou vilão para milhões de brasileiros após ele e seu partido se envolverem em seguidos escândalos de corrupção. Mas também foi o vilão que virou herói para eleitores jovens, que não viveram seus governos anteriores, mas acabaram dando grande ajuda para que ele conseguisse vencer Bolsonaro no ano passado.
Para seu terceiro mandato, o presidente que será empossado hoje precisará, além de lidar com a parcela da população que o odeia, negociar com um Congresso no qual terá base frágil.
Esse desafio começou a ser enfrentado por Lula e por seus aliados desde antes da posse. Precisando de recursos no Orçamento para cumprir suas principais promessas de campanha, o aumento real no salário mínimo e a manutenção dos R$ 600 para os beneficiários do novo Bolsa Família, o governo eleito precisou arregaçar as mangas e costurar com os parlamentares da última legislatura a aprovação de uma PEC da Transição.
A montagem do ministério que assume a partir de segunda (2/1) também foi dura e só terminou há menos de uma semana da posse – a maior demora para uma montagem de equipe desde a redemocratização.
A transição
A transição de governo, coordenada pelo vice-presidente Geraldo Alckmin (PSB), teve cerca de um mês e meio para elaborar sugestões para a nova gestão.
Entre saúde, educação, esportes e cidades, foram 32 grupos técnicos para avaliar a situação de cada setor, elaborar alertas para os primeiros meses do governo, apontar quais são as emergências orçamentárias e apresentar sugestões de revogações, além de propor ações prioritárias.
O relatório final foi entregue a Lula em 11 de dezembro, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), sede do Gabinete de Transição.
O desenho do novo governo
O resultado das negociações que foram necessárias para montar a nova Esplanada e garantir uma base parlamentar, ainda que frágil, é uma equipe heterogênea que se divide por 37 ministérios. No núcleo duro da administração e mais próximo ao presidente, Lula não fez concessões e se cercou de petistas históricos, como Fernando Haddad na Fazenda, Camilo Santana na Educação, Alexandre Padilha nas Relações Institucionais e Rui Costa na Casa Civil.
Para garantir a governabilidade e cumprir acordos feitos ao longo da campanha, porém, Lula teve de abrir espaço em ministérios importantes para aliados não tão próximos (e que podem disputar espaço político com seu grupo). É o caso da senadora Simone Tebet (MDB), que vai assumir o Planejamento, e da deputada eleita Marina Silva (Rede), que vai voltar ao Meio Ambiente após ter deixado o mesmo cargo 14 anos antes brigada com Lula e com o PT.
Fecham esse desenho do novo ministério políticos de partidos de esquerda aliados e também do Centrão, que estão cobrando a fatura por seus partidos estarem prometendo apoio ao governo neste início de gestão.
Se esse plano inicial vai dar certo, é cedo para saber. Hoje, porém, os lulistas não se preocupam com isso. O que eles querem é festa.