A proposta de criação de uma Guarda Nacional destinada a proteger espaços cívicos do Distrito Federal — como a Esplanada dos Ministérios, a Praça dos Três Poderes e o setor de Embaixadas —, sugerida pelo ministro da Justiça Flávio Dino (PSB) nesta quinta-feira (26/1), foi vista por especialistas de segurança pública e ex-gestores da área no DF como uma mudança que demanda cautela e estudos aprofundados.
A medida faz parte de um pacote de ações de combate a atos golpistas entregue ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) por Dino nesta quinta. Uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e um projeto de lei foram produzidos pela pasta para criar e regulamentar uma Guarda Nacional que será coordenada pelo ministério e atuará especificamente para fazer policiamento ostensivo nos prédios públicos localizados na área central de Brasília.
Apesar de não detalhar a composição estrutural da nova força de segurança, Dino adiantou que a ideia é que a Força Nacional de Segurança Pública seja convertida em uma guarda permanente com especialização em conter manifestações e invasões. O ministro ainda negou uma proposta de federalizar, permanentemente, a segurança pública do DF e afirmou que a Guarda Nacional é um “meio termo” entre os governos federal e do DF.
Para o ex-secretário de segurança pública do DF e sociólogo Arthur Trindade, a regularização da Força Nacional é uma ação bem-vinda e necessária para o país, já que a instituição funciona apenas por decretos e portarias e paga os membros, cedidos por outros estados, por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública em forma de diárias — nas palavras dele, uma organização importante, mas “frágil e cara”.
“Ainda não sabemos exatamente o conteúdo da proposta anunciada por Flávio Dino, mas é bem-vinda a ideia de ter uma força de segurança vinculada ao Ministério da Justiça que substitua a Força Nacional. Esse não é um debate novo: a força não está institucionalizada em forma de lei, só em decretos e portarias”, detalha Arthur.
No entanto, ele acrescenta que a destinação da Guarda para proteção da Esplanada e outros espaços públicos não é necessária porque a PMDF já possui recursos e tem histórico de efetiva proteção dos Três Poderes. “Não me parece razoável destinar essa nova polícia para guardar a Esplanada. A PMDF tem duas grandes atribuições: uma é cuidar das cidades, policiamento ostensivo, e a outra é guardar os ministérios e outros espaços dos Três Poderes”, defendeu.
“A corporação tem que ter sempre uma tropa fixa preparada para isso e ela tem. Não deu certo no dia 8 de janeiro porque houve negligência e omissão, mas a polícia tem uma tropa muito competente para fazer isso. Via de regra, fazem muito bem feito e raramente ocorrem acidentes”, acrescentou.
Rodrigo Rollemberg, que governou o DF entre 2015 e 2019, também acredita que a proteção proposta por Dino já é cumprida, com excelência, pela Polícia Militar. “Entendo, como ex-governador, que a PMDF tem condições de garantir a segurança dos prédios públicos e das sedes dos poderes da República, como sempre fez ao longo da história”, pontuou.
No entanto, o político afirma que a corporação precisa de um governador “responsável e que acompanhe as ações” dos agentes. “A Lei orgânica do DF diz que o comandante máximo da PMDF é o governador. Eu enfrentei um período de turbulência no meu mandato, enfrentamos dezenas de manifestações na Esplanada com um contingente muito maior de pessoas e conseguimos manter a ordem, porque eu acompanhava o processo antes, durante e depois”, declarou.
“Eu tenho condições de dizer que a PMDF bem comandada tem condições de manter a ordem na área central de Brasília. O que aconteceu no DF, o que assistimos de forma estarrecida, foi uma completa omissão e negligência do governador em 8 de janeiro. Inclusive, ao longo de todo dia de tensão, o governador ficou incomunicável até o início da noite”, acrescentou.
O especialista em segurança pública Leonardo Sant’Anna também avalia como positiva a atuação da PMDF em defender os Três Poderes e sugere uma reflexão ao governo federal sobre a real necessidade de uma nova polícia. “É preciso avaliar se realmente é necessário a criação da Guarda dado ao histórico da PMDF, que não é arranhado. Historicamente, a polícia da capital já tem um batalhão diplomático e outras divisões que cumprem o objetivo”, opina.
A melhor solução, para o especialista, seria investir nas forças que já existem. “Se é preciso desse reforço, porque não trazer mais profissionais para uma instituição já existente? Uma vez que o próprio Ricardo Capelli (interventor federal) fez visitas nas sedes da corporação e constatou que existe bastante capacidade nas polícias do DF”, sugere.
Se continuar com o plano de criar a nova polícia, Arthur Trindade alerta: "se isso não for bem pensado, bem debatido, e as funções não forem bem desenhadas com as funções da PMDF, é capaz de trazer mais dor de cabeça do que solução".
Mais do que uma canetada: nova polícia pode demandar mais esforços que recompensas
Muito mais do que a aprovação de uma PEC, a criação de uma nova polícia deve ser feita após o estudo de diversos modelos internacionais e a restrita demarcação de como será feita a composição da nova corporação, pontua Leonardo Sant’Anna. O processo de criação não pode ser superficial, ainda mais porque a Guarda Nacional atuará no mesmo campo de atuação de outra polícia, a militar.
“Do aspecto legal, é preciso alterar a legislação com a responsabilização das polícias. Por exemplo, legalmente, nós teríamos uma área do DF que não mais seria policiada e protegida pelas forças de segurança criadas há 60 anos na capital e, por isso, deve ser criado um novo modelo de atuação”, detalha.
Algumas perguntas importantes devem ser respondidas nos documentos que instituírem a Guarda. “Aconteceu um crime na Esplanada. A PMDF entra no local ou não? O que vai ser feito? Se houve um assalto, a Guarda Nacional que prende? Se sim, leva para qual polícia? Se o local é federal, seria para a Polícia Federal, mas a instituição não tem efetivo para cobrir essa demanda. É algo que também precisa ser questionado e respondido”, salienta o especialista.
Um dos pontos de atenção é a definição de como o quadro da Guarda Nacional será composta. “Parece simples formar uma nova polícia, principalmente ser for uma força composta por pessoas já formadas, trazer de outros estados, e apresentá-las às novas atividades, mas não é bem assim. O histórico que temos de algo feito assim foi com a Força Nacional, que por falta de planejamento apresenta uma série de falhas institucionais: policiais foram cedidos por estados, mas não havia estrutura para formar essas pessoas”, detalhou.
É preciso detalhar quem formará as primeiras equipes da Guarda — e com a definição, alinhar o novo status policial dos agentes. “Eles vão ser policiais civis ou militares? Vão ser aposentados ou ainda atuantes? Se aposentados, como será feita a questão salarial? É importante que seja avaliado isso”, diz o especialista. A estimativa de Leonardo é que, para cumprir o objetivo do governo federal, seja necessário cerca de 600 policiais.
Durante o anúncio desta quinta-feira, Dino citou a inspiração na guarda de Washington, nos EUA, para formação da Guarda Nacional. Leonardo Sant’Anna diz que é valido se for adotado, também, a cultura de escolha dos agentes. “Para compor polícias, as corporações dão preferência para policiais que tenham ao menos cinco anos de formação. Esse agente já sabe de tiro, de direito penal e a formação dessas pessoas seria muito mais barata. Se isso for um quesito a ser avaliado e for dado a preferência, é possível que o modelo dê certo”, acredita.
Mesmo com uso de policiais já formados, o alinhamento de conduta ética e operacional dos agentes é um aspecto importante, que garante a manutenção de uma conduta democrática e igualitária para todo efetivo, o que demanda tempo, estrutura e recursos financeiros. “É preciso criar valores, pilares e conceitos para que outros equívocos não sejam cometidos. Outra coisa: onde essas pessoas vão ser formadas? Vai pegar emprestada a academia da PF, da Polícia Civil ou da Polícia Militar?”, questiona.
Por fim, Leonardo diz que, no mundo, há exemplos de erros a não ser cometidos na criação de novas polícias e sugere que os estrategistas do Ministério da Justiça estudem os casos para não criar um modelo já fadado ao fracasso.
Criação da Guarda Nacional é reflexo de desconfiança da PMDF
A proposta surge em um momento de tensão política entre os governos, causada pelas falhas de segurança das forças policiais do DF durante os atos golpistas de 8 de janeiro, no qual extremistas bolsonaristas invadiram e depredaram as sedes dos Três Poderes.
A Polícia Militar do Distrito Federal foi considerada falha na contenção dos criminosos — em vídeos divulgados pelo Supremo Tribunal Federal (STF), na quarta-feira (25/1), os agentes são vistos sem ação diante dos invasores e, em certo momento, chegam a recuar e abrir espaço para os criminosos chegarem à Corte.
Para Arthur Trindade, ex-secretário de segurança pública do DF, “as autoridades têm bons motivos para falar sobre desconfiança”. “O pessoal pode ficar melindrado, mas é fato que a Tropa de Choque ainda recuou para o pessoal invadir o Supremo. Há uma perda de confiança e esse problema deve ser trabalhado em outra direção, como dar passos junto ao governo federal, como a nomeação de Sandro Avelar, que foi feita com apreço do Executivo federal”, disse.
“Falei para ele (Sandro Avelar) que ele é o homem certo, na hora certa e no lugar certo. Ele é uma solução para a questão da confiança. Talvez o cerne do problema estava na figura do Anderson Torres, alguém que não gozava da confiança do governo federal e aconteceu tudo isso. O governador Ibaneis forçou a mão com Torres, apesar de receber inúmeros avisos, e deu no que deu”, acrescenta.