Vladimir Putin e Xi Jinping se encontraram no início da semana em Moscou para discutir o conflito na Ucrânia e a relação entre seus países.
As duas nações vêm se aproximando nos últimos anos, em uma parceria que foi definida como "sem limites" pelos dois governos em um comunicado conjunto divulgado pouco antes da invasão do território ucraniano pelas forças russas.
Na segunda-feira (20/03), os dois líderes ainda se referiram mutuamente como "queridos amigos" e trocaram elogios e apertos de mão.
Mas, afinal, o que une esses dois países?
A BBC News Brasil conversou com especialistas em política chinesa e russa de diferentes partes do globo e que veem o momento atual sob perspectivas distintas para identificar quais são os interesses e visões em comum que aproximam Moscou e Pequim.
Interesses econômicos e de segurança
Segundo analistas, acima de tudo essa é uma parceria pragmática, que busca o benefício mútuo.
Após a invasão à Ucrânia, Estados Unidos, União Europeia, Reino Unido e outras nações aliadas impuseram sanções restritas à Rússia - proibindo as importações de petróleo e as exportações de produtos de alta tecnologia.
Com isso, o comércio desses países com os russos caiu exponencialmente ao longo de 2022 e a China se solidificou como o parceiro comercial mais importante da Rússia.
O comércio bilateral entre os dois parceiros atingiu um nível recorde em 2022, chegando a 190 bilhões de dólares. Ou seja, um aumento de 30% em relação ao ano anterior.
Além disso, quase metade de todas as receitas anuais do governo russo vem do petróleo e gás, e as vendas para os países da União Europeia despencaram com as sanções.
Mas uma parte significativa desse déficit foi compensada com o aumento das vendas para a Ásia - e para a China.
A Rússia exportou duas vezes mais gás de cozinha e 50% a mais de gás natural para a China em 2022 do que no ano anterior. Há ainda projetos de longo prazo para expandir os laços e construir um novo gasoduto para ligar os dois territórios.
Para além da economia, também há cooperação em termos de segurança, segundo analistas.
A China não só compartilha uma fronteira de mais de 4 mil quilômetros com a Rússia, como também faz divisa com outras ex-repúblicas soviéticas sob a influência de Moscou, como o Cazaquistão, o Quirguistão e o Tajiquistão. E estrategicamente, Pequim não quer instabilidade em suas fronteiras.
Mas a grande questão neste momento em relação ao conflito na Ucrânia é se a China, o quarto maior exportador de armas do mundo, vai enviar ajuda bélica para a Rússia.
Até agora, o governo chinês não forneceu equipamentos letais à Rússia, mas os Estados Unidos acreditam que essa é uma possibilidade no futuro.
Siemon Wezeman, do Instituto Internacional de Estocolmo para Estudos da Paz, disse à BBC que a China está fabricando material bélico cada vez mais sofisticado, como por exemplo drones, que podem interessar à Rússia. Porém até o momento não há provas de envio de armas.
Visão de mundo e oposição ao Ocidente
Mas a ligação não para por aí. Segundo os especialistas consultados pela reportagem, uma posição similar sobre o Ocidente e o futuro da ordem mundial, além de visões de mundo semelhantes, também unem as duas potências.
Para eles, existe uma vaga similaridade nos valores enaltecidos por ambos os governos e - em parte - pelas sociedades.
O pesquisador e professor da American University, Joseph Torigian, estuda a trajetória política desses dois países e as estratégias de seus governos. Segundo ele, vigora em ambos "uma forma diferente de olhar para o mundo, que coloca mais ênfase no poder do Estado e em valores sociais conservadores".
Ambos os governos também possuem tendências autocráticas, em oposição ao modelo de democracia ocidental, diz Torigian.
Mas esses valores ou ideologias têm origens distintas nos dois países e são difundidos e aplicados de formas e em intensidades diferentes. No passado, inclusive, China e União Soviética tiveram conflitos em relação aos seus modelos de comunismo.
O professor e pesquisador chinês Yingjie Guo, da Universidade de Sidney, explica que o governo chinês afirma se guiar pelas ideologias do comunismo e marxismo, mas que na prática o desenvolvimento econômico muitas vezes é colocado em primeiro lugar.
"O Partido Comunista estabelece como objetivo o comunismo e continua a dizer que é guiado pelo marxismo (...). No entanto, não tem pressa em avançar para o comunismo ou mesmo para estágios mais avançados do socialismo. Pelo contrário, o socialismo chinês voltou a um estágio inicial, em que as relações de produção não socialistas, incluindo a propriedade privada, são permitidas."
Além disso, segundo o cientista político e historiador Rana Mitter, da Universidade de Oxford, o pensamento político chinês atual também tem muitas influências do Confucionismo, uma doutrina que vem sendo retomada por Xi Jinping.
"Essa filosofia tradicional chinesa traz elementos a respeito da hierarquia e do relacionamento entre as pessoas e países", explica.
Já no caso da Rússia, apesar do passado soviético comunista, as influências ideológicas atuais são totalmente diferentes, além de mais dispersas e difíceis de serem identificadas.
"A filosofia do governo Putin atualmente está diretamente ligada ao nacionalismo, mas mais ainda ao imperialismo e a um sentimento de superioridade (combinado com um sentimento de ressentimento) da nação russa. (...)
É basicamente um conjunto completo de ideologias clássicas da extrema direita", definiu o pesquisador e jornalista russo Andrei Kolesnikov, membro do think tank Carnegie Endowment for International Peace.
Pesquisador e professor da Universidade Federal do Sul, na Rússia, Victor Apryshchenko afirma ainda que esse discurso nacionalista está presente não só nas declarações de oficiais do governo, mas também nas escolas, na produção cultural controlada pelo Estado e nas redes sociais.
"Creio que a principal explicação para esse renascimento do nacionalismo atualmente é o trauma que a Rússia e a população russa enfrentaram após o colapso da União Soviética. Me parece que desde 1991 há um esforço interno e externo para tentar retomar a posição anterior", diz.
Mas o ponto que une os dois países é justamente como os seus valores se contrapõem aos ditos ocidentais, em especial quando se trata da defesa da democracia como o melhor modelo de governo e da definição de direitos humanos e outros conceitos.
"A oposição ao modelo ocidental certamente ajuda a unir os dois países", afirma Andrew Mertha, diretor do programa de estudos sobre a China da Universidade Johns Hopkins, nos EUA.
Segundo analistas, Rússia e China não estão necessariamente tentando impor seu modo de ver a realidade ao resto do mundo, como fizeram durante a Guerra Fria, mas temem justamente o que acreditam ser uma tentativa do Ocidente de fazer isso com seus próprios valores.
Segundo Vicente Ferraro Jr, cientista político e pesquisador do Laboratório de Estudos da Ásia da Universidade de São Paulo (USP), esse é um dos principais componentes políticos da relação hoje.
"Ambos contestam em parte o liberalismo político e acusam o Ocidente de tentar 'exportar' seus modelos políticos, de maneira inapropriada, a outras sociedades e contextos culturais. O liberalismo político e, indiretamente, a democracia representativa são apresentados por ambas não como valores universais, mas como construções do Ocidente instrumentalizadas para fins geopolíticos", diz.
Existem, por exemplo, vozes que defendem a ideia de que os conceitos de democracia e direitos propostos pelos Estados Unidos e pela Europa na verdade são apenas uma forma de manipular os demais países em favor de seus interesses.
Em outras palavras, Moscou e Pequim compartilham da ideia de que a ordem internacional liderada pelo Ocidente e por suas regras é uma ameaça tanto para a China quanto para a Rússia.
Segundo os especialistas, isso fica claro tanto nos discursos em que Putin acusa a Otan de expandir seus interesses além do seu próprio território, quanto quando Xi Jinping critica a busca dos Estados Unidos por aliados na região da Ásia-Pacífico.
"Trata-se de uma aliança contra um adversário comum, baseada principalmente na ideia de que os Estados Unidos estão usando seu poder militar livremente e amplamente em todo o mundo e que isso não pode continuar", definiu o russo Mikhail Alexseev, professor da Universidade Estadual de San Diego.
Para ele, sem essa percepção comum sobre o Ocidente, a estrutura da parceria entre Rússia e China pode desabar.
Uma parceria 'sem limites'?
Mas há quem questione se essa aliança é, de fato, ilimitada, como os dois governos definiram em um comunicado conjunto emitido pouco antes da invasão da Ucrânia.
As diferenças ideológicas, que existem apesar das visões de mundo semelhantes, podem se tornar um problema em algum momento,
Os precedentes estabelecidos no passado também não são dos melhores. Em março de 1969, as tropas da China e da antiga União Soviética (URSS) se enfrentaram numa batalha que durou meses e marcou por mais de duas décadas as relações entre os dois países.
Os analistas afirmam ainda que a China pode abandonar a parceria caso a Rússia vá longe demais em sua empreitada na Ucrânia, por exemplo utilizando armas nucleares. Ou então caso uma cooperação mais vantajosa economicamente se apresente no futuro.
A professora Alexandra Vacroux, da Universidade de Harvard, definiu da seguinte maneira: "É uma espécie de casamento por conveniência, mas não existe amor de verdade".
- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/articles/c1dxekp22peo