Medo, ansiedade e repulsa. É o que sentiu o costureiro Ricardo Seijas, 26 anos, quando descobriu que o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, desembarcara de madrugada em Brasília, nesta semana. “Ao pegar o celular pela manhã e ler as notícias, imediatamente tive lembranças de um passado que me machuca bastante”, contou o jovem, obrigado a abandonar, aos 21 anos, o sonho de ser dentista em sua cidade natal, Ciudad Bolívar, a aproximadamente 600 quilômetros (km) de Caracas, para fugir da repressão de Maduro. “Fui forçado a sair do meu país em junho de 2018, deixar minha família e renunciar aos meus sonhos, por correr o risco de passar o resto da vida preso. Meu mundo caiu, quando a diretora da universidade onde eu estudava me ligou e disse que meu nome estava em uma lista da polícia de alunos procurados, por participação em protestos estudantis contra o regime.” Depois do aviso, Seijas arrumou as malas e se despediu da mãe, sem muita cerimônia, rumo a Boa Vista (RR), juntando-se ao êxodo venezuelano que começou a entrar no Brasil naquele ano.
Depois de chegar à capital de Roraima, obteve auxílio da Operação Acolhida, e, posteriormente, conseguiu uma oportunidade de trabalho em Brasília, onde atualmente costura para fora. Ele conseguiu trazer a mãe em 2020, que hoje mora em uma cidade a uma hora da capital federal. “Não tinha condições de ela permanecer lá”, disse Seijas. “A crise econômica é brutal. O dinheiro quase não tem valor, por causa da inflação altíssima.
Apenas integrantes do governo têm poder aquisivo real na Venezuela. Alguns até conseguiram bens que não lhes pertenciam antes.” Seijas lembra sua adolescência, em 2011, quando o pai adquiriu um apartamento, ainda na planta, no condomínio dos sonhos da família. Ao pegar a chave, e já com tudo quitado, o homem recebeu um telefonema do governo Chávez: a propriedade havia sido confiscada para cumprir a “função social”, visto que ele já tinha outros imóveis. O dinheiro pago pelo apartamento nunca foi devolvido para a família de Seijas.
A presença de Maduro no Brasil exumou outros pesadelos do jovem. Com a economia já debilitada em 2014 deixada de herança por Chávez, em virtude da estatização quase total dos meios de produção, Seijas se lembra da escassez de produtos nas prateleiras do comércio, o encarecimento dos mantimentos restantes e o fortalecimento do mercado paralelo. Naquele ano, saques a supermercados e a farmácias se tornaram comuns. Nem mesmo a distribuidora de bebidas da família, único meio de sobrevivência da mãe que ficara viúva no ano anterior, foi poupada. “Derrubaram as paredes”, disse. “Até o carro que meu pai me deu de presente foi roubado pelos criminosos.” Ainda com parentes na Venezuela, Seijas recebe poucas informações sobre a situação dessas pessoas.
Os sentimentos e as recordações ruins que a visita de Maduro ao Brasil despertou em Seijas foram os mesmos que se apoderaram da dona de casa Elizabeth Jimenez, 39 anos. “Me senti tremendamente desrespeitada, tão logo fiquei sabendo da presença de Maduro aqui, porque o que o ditador faz na Venezuela é desumano”, desabafou. “Fico mais indignada ainda ao ver que isso é ignorado pelo presidente do país que escolhi para ser meu refúgio. Ao receber Maduro e declarar publicamente que o que se passa na Venezuela é ‘narrativa’, Lula honra em sua casa um inimigo desprezado pelo povo e legitima todas as violações aos direitos humanos que ocorrem lá.” Elizabeth não consegue se esquecer das dificuldades financeiras que passou com a família em Tumeremo, cidade a cerca de 800 km de Caracas, tampouco da falta de remédios. “Minha sogra morreu com câncer, por não ter medicamentos suficientes no sistema público de saúde, e por não termos dinheiro para pagar pela quimioterapia em um hospital privado, onde só rico e gente ligada ao governo federal têm acesso.”
Em 2018, assim como Seijas, Elizabeth, o marido e o filho especial de 14 anos não perderam a oportunidade de mudança para o Brasil. Estabelecidos provisoriamente em Boa Vista, aceitaram sem rodeios uma proposta de vida melhor em Curitiba. Atualmente, a família sobrevive do dinheiro que o marido de Elizabeth ganha como pedreiro e fazendo “bicos”. O adolescente, que depende da mãe para praticamente tudo em razão da deficiência que teve em consequência de um acidente na Venezuela, faz tratamento no Sistema Público de Saúde. A mulher lamenta a situação desumana de familiares e amigos que permanecem no país. “Temos poucas informações a respeito deles, porque a internet na Venezuela é cara”, observou ela. “Além disso, a falta de energia no país impossibilita as pessoas de usarem objetos eletrônicos. Não sei o que seria do meu filho se estivéssemos lá. Sonhos morrem todos os dias na Venezuela.”
O professor de engenharia de produção Dey Salvador, 44 anos, é um exemplo. O docente teve a vontade de lecionar na Venezuela sufocada pela ditadura. Em 2009, Dey e a mulher deixaram a cidade de Mérida, a quase 700 km da capital, em busca de especialização no Brasil. O objetivo era adquirir mais conhecimentos e, assim, retornar à Venezuela para dar aulas. Com o endurecimento do regime, nunca mais voltaram, e, agora, fixaram raízes em Salvador. As informações que chegam até eles vêm de familiares e amigos que ainda estão no país. “Além da crise econômica e do fim das liberdades, o chavismo provoca a segregação das famílias”, constatou o professor. “Pais, mães, filhos e irmãos estão separados hoje. O que se espera de quem tem conhecimento desse cenário é compaixão. A vinda de Maduro ao Brasil provocou em mim indignação e tristeza. Não se deve invisibilizar uma crise, como fez o presidente Lula, ao chamá-la de ‘narrativa’. Os fatos são fatos, e isso não muda.”