15/01/2024 às 09h41min - Atualizada em 15/01/2024 às 09h41min

Contradições travam reinserção do Brasil no cenário internacional

Primeiro ano de governo foi marcado por muitas viagens do presidente ao exterior, com declarações polêmicas e posições conflitantes

​lula viagem - (crédito: kleber sales)

Ao longo de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) realizou uma série de viagens internacionais por quatro continentes: América, Ásia, Europa e África. No total, o chefe do Executivo visitou 24 países. Ao mesmo tempo em que conseguiu retomar a diplomacia brasileira, colecionou declarações polêmicas e discursos ambíguos que geraram desgastes nas relações internacionais e locais.

O petista esteve nos Estados Unidos, na China, na França, na Argentina, na Alemanha e em nações africanas, como Cabo Verde e Angola, por exemplo. Foi à Cúpula do G20, na Índia, visitou Joanesburgo para a Cúpula do Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e liderou a delegação brasileira na COP28, em Dubai.

No último dia 5, ao ser criticado pela quantidade de dias fora do país, Lula disse que era preciso recuperar a imagem do Brasil no exterior e destacou que o país "voltou a ser respeitado".

"Eu tenho combinado viagens aqui dentro com viagens para o exterior porque é importante recuperar a capacidade do mercado interno brasileiro, e o Brasil estava alijado da política internacional", explicou.

Em várias oportunidades, porém, Lula deu declarações que contrastaram com a posição histórica de neutralidade defendida pelo Brasil em questões diplomáticas. Em abril, esteve na China, onde afirmou que a ajuda ocidental à Ucrânia estaria prolongando e incentivando a guerra. A posição foi interpretada como um apoio a Vladimir Putin e uma oposição a Washington, gerando reações negativas por parte dos Estados Unidos e da União Europeia. Um porta-voz do governo americano chegou a dizer que Lula estava "papagueando propaganda russa e chinesa".

Na mesma viagem, Lula sugeriu que a Ucrânia cedesse parte de seu território para uma eventual negociação de paz e afirmou que tanto o líder ucraniano, Volodymyr Zelenski, como o presidente russo, Vladimir Putin, tinham responsabilidade pelo conflito. Também em abril, em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, voltou a dizer que a guerra foi uma decisão tomada pelos dois países.

"Colocar a culpa no país invadido foi um erro que ele mesmo teve que recuar depois. Não trouxe nenhuma vantagem e mostrou amadorismo. Defender (o presidente da Venezuela, Nicolás) Maduro também constrange o presidente Lula tanto internamente quanto nos foros internacionais. Todas essas polêmicas foram dispensáveis, já que, no geral, a saída de Bolsonaro foi bem recebida pela comunidade internacional", analisou Wagner Parente, consultor em relações internacionais e CEO da BMJ Consultores Associados.

Em maio passado, na Cúpula de Chefes de Estado da América do Sul, em Brasília, Lula considerou a presença do presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, como um momento "histórico" e chamou de "narrativa" a visão do país vizinho ser uma ditadura. Por isso, foi criticado pela oposição e por outros chefes de estado, como os presidentes de Uruguai e Chile, Luis Alberto Lacalle Pou e Gabriel Boric, respectivamente.

Para o diplomata e professor Paulo Roberto de Almeida, "a recepção dessas ideias no G7 de Hiroshima foi a pior possível, e um esperado encontro com o presidente Zelensky foi sorrateiramente evitado". Ele avalia que a atitude ambígua do chefe de Estado brasileiro prevaleceu no novo foco de tensão criado pela Venezuela, que ameaçou invadir a vizinha Guiana. Lula recomendou "bom-senso" aos dois lados, como se fossem equivalentes. "Trata-se de um padrão costumeiro do lulopetismo: os aliados ideológicos podem atentar contra os direitos humanos, o que não é permitido aos ocidentais", disse Almeida.

O chefe do Executivo ainda esteve duas vezes na Argentina, principal parceiro comercial na América do Sul: em janeiro, para a reunião da Celac, e na cúpula do Mercosul, em julho, mas não foi à posse do novo presidente argentino, Javier Milei. Nos Estados Unidos, encontrou-se com o presidente Joe Biden, em fevereiro. Em setembro, voltou ao país para a sessão de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em Nova York.

No mesmo mês, embarcou para Nova Delhi, na Índia, para a Cúpula do G20. Na ocasião, disse que Putin não seria preso caso viesse ao Brasil para participar da reunião do Brics, e questionou a adesão do Brasil ao Tribunal Penal Internacional (TPI), que, em março, havia expedido documento para que o presidente russo seja julgado por crimes de guerra.

Fechando o ano, em dezembro, o presidente esteve na Arábia Saudita, no Catar, nos Emirados Árabes e na Alemanha. Em meio à principal agenda, da COP28, tentou concluir o acordo comercial do Mercosul com a União Europeia, sem sucesso. Na data, o presidente da França, Emmanuel Macron, disse ser contra o acordo de livre comércio — chamado por ele de antiquado e "mal remendado". "Se não tiver acordo, paciência. Não foi por falta de vontade", retrucou Lula, que depois, já no Brasil, disse ser "um sonho" ver, em sua presidência, o acordo chegar a bom termo.

Neste ano, o presidente promete viajar mais pelo Brasil, mas já programou visitas à Etiópia, para participar da reunião de cúpula da União Africana, e à Guiana, para a conferência do Mercado Comum e Comunidade do Caribe (Caricom).

Concerto sem maestro
A agenda internacional de Lula tem sido positiva em relação à reinserção do Brasil na esfera internacional, observa Márcio Coimbra, presidente do Instituto Monitor da Democracia e vice-presidente da Associação Brasileira de Relações Institucionais e Governamentais (Abrig). No entanto, ressalta que o conteúdo da agenda de Lula parece estar "datado".

"Isso mostra que a nossa diplomacia, em termos de teor, está ultrapassada. Lula discute temas que não estão na pauta internacional, como a reorganização do sistema internacional, reorganização do Conselho de Segurança da ONU. Não é o momento de se discutir essa pauta", aponta Coimbra. Para ele, "existe um vácuo que o Brasil poderia ocupar, um vácuo econômico que seria o diálogo entre o meio ambiente e aquilo que o Brasil poderia oferecer na esfera internacional. Mas essa agenda está negligenciada tratando de temas ultrapassados".

Para a professora de direito internacional da Universidade de São Paulo (USP) Maristela Basso, a agenda internacional de Lula chama a atenção, mas não apresenta estratégia clara. "Deixa a impressão de que estamos assistindo a um concerto sem maestro. Embora as viagens e os encontros tenham sido inúmeros e importantes, não veremos resultados concretos a curto prazo, sejam políticos ou comerciais. As gafes e discursos de improviso enfraquecem as ambições do Brasil de aumentar seu 'soft power' e sua liderança regional e global", avalia a acadêmica.

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice) e ex-embaixador do Brasil em Londres e em Washington, Rubens Barbosa ressalta que Lula perseguiu prioridades como a volta do Brasil ao cenário internacional, meio ambiente e mudanças climáticas e integração da América do Sul. Conseguiu trazer a COP para Belém, o G20 e o Brics, "porém, deu declarações equivocadas, como quando disse que Zelensky era tão responsável quanto Putin pela guerra.

A segunda prioridade foi a mais bem-sucedida, com mudanças internas em relação à Amazônia, os compromissos do Brasil no tocante ao desmatamento, às emissões de gás de efeito estufa, à convocação da reunião do Tratado de Cooperação Amazônica e participação positiva nas COPs. Com relação à América do Sul, convocou, depois de mais de 20 anos, reunião de cúpula com os presidentes, mas escorregou no tratamento a Maduro", observou, acrescentando que Lula enfrenta agora dois grandes desafios: a relação com o presidente da Argentina, Javier Milei, e a disputa entre Venezuela e Guiana pelo território de Essequibo, na fronteira norte do Brasil.


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