O segundo e último dia da Cúpula da Paz na Ucrânia ocorreu ontem, na Suíça, com a presença de 92 delegações nacionais e uma representação latino-americana robusta. A Rússia não foi convidada e a China cancelou a participação no evento, que terminou com uma declaração aprovada pela quase totalidade dos participantes — cerca de 80 nações. No entanto, sem o apoio de países como Brasil, Índia, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.
Os participantes foram divididos em três grupos de trabalho neste domingo: segurança nuclear, assuntos humanitários, segurança alimentar e liberdade de navegação no Mar Negro. As discussões basearam-se em pontos consensuais do plano de paz apresentado pelo presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, no final de 2022 e nas resoluções da ONU sobre a invasão russa. Os líderes mundiais reforçaram o apoio à independência e à integridade territorial da Ucrânia, mas reafirmaram a necessidade de incluir Moscou nas discussões e negociações sobre o fim da guerra.
Para a mestra e doutora em relações internacionais Mariana Kalil, professora de geopolítica da Escola Superior de Guerra, qualquer iniciativa de diálogo inclusivo é pilar fundamental da diplomacia e da paz. "Sem incluir todas as partes em pé de igualdade, no entanto, pode representar tentativa de manipulação pelos países que concentram poder e pode resultar em ainda mais demora ou mesmo em afastamento de qualquer solução que não seja militar".
A reunião ocorreu em um momento delicado para a Ucrânia no campo de batalha, onde as forças russas são mais fortes e estão em maior número. O Ministério da Defesa russo reivindicou, neste domingo, a tomada de Zahirne, na região de Zaporizhzhia, sul da Ucrânia, além das condições impostas pelo presidente russo na última sexta-feira para o cessar-fogo. O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, insistiu que não há "ultimato", mas uma "iniciativa de paz que considera a realidade no terreno".
Doações
O bombardeio russo das infraestruturas energéticas ucranianas levou a uma redução à metade da produção de eletricidade da Ucrânia desde o inverno passado. Além da ajuda de mais de 1,5 bilhão de dólares anunciada no sábado pela vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, outros países se comprometeram a contribuir.
A Noruega anunciou, ontem, que destinará 1,1 milhões de coroas (cerca de 552 milhões de reais) à Ucrânia. Outros 11 milhões de dólares (58 milhões de reais) foram destinados a reparos de infraestruturas na região de Kharkiv, nordeste do país, segundo comunicado publicado enquanto Store está na Suíça, participando da conferência.
Oslo também prometeu 75 milhões de coroas (cerca de 37 milhões de reais) para o período de 2023 à 2027, em ajuda militar e civil.
Empréstimo
As mensagens dos países que não fazem parte do círculo tradicional de apoio à Ucrânia não foram tão claras. A Arábia Saudita, aliada da Rússia na área da energia, disse que Kiev terá que assumir "um compromisso difícil" se quiser encerrar o conflito. "É essencial enfatizar que qualquer processo confiável vai necessitar da participação russa", disse o chanceler saudita, Faisal bin Farhan.
O presidente do Quênia, William Ruto, criticou as medidas ocidentais mais recentes contra a Rússia, referindo-se ao acordo do G7 para oferecer um empréstimo de 50 bilhões de dólares à Ucrânia financiado com os rendimentos dos ativos russos congelados. "Assim como a invasão russa à Ucrânia foi ilegal e inaceitável, a apropriação unilateral de ativos russos é igualmente ilegal", afirmou Ruto.
O especialista Gustavo Blum esclarece que trata-se de uma questão de segurança jurídica. "Muitos foram congelados logo no início do conflito, em 2022. A grande maioria são de bilionários russos — alguns dos quais grandes oligarcas. Na realidade, a imagem da Europa e dos EUA como mercados 'seguros' está sendo colocada em cheque quando se observa a política de pressão máxima sobre a Rússia que convive com o apoio a Israel. Os países emergentes observam isso e devem, no momento, estar também pensando em alternativas para alocar seus recursos".
Relatório
Brasil, Índia, Arábia Saudita, África do Sul e Emirados Árabes Unidos, todos os quais têm importantes relações comerciais com a Rússia como membros do grupo econômico Brics, participaram da reunião, mas não concordaram com a declaração final conjunta. Outros países, como Arménia, Bahrein, Indonésia, Líbia, Tailândia e México, também não assinaram o documento.
O relatório reafirmou "os princípios de soberania, independência e integridade territorial de todos os Estados, incluindo a Ucrânia", apelou à troca de prisioneiros e à volta para casa de crianças deportadas para a Rússia.
"Acreditamos que alcançar a paz requer o envolvimento e o diálogo entre todas as partes", diz trecho. Volodimir Zelensky prometeu, no sábado, apresentar propostas de paz à Rússia assim que forem validadas pela comunidade internacional.
"A falta de unidade nas posições demonstra que por mais que o tópico em discussão seja a Ucrânia, como forma de apoiar um dos lados do conflito e isolar a Rússia, outras situações internacionais também influenciam na posição dos países. A situação em Gaza talvez seja a mais visível, mas foram citados também os conflitos na Síria, no Congo e no Iêmen.", diz Gustavo Glodes Blum.
Posicionamentos
As diferentes posições ilustram a dificuldade que Kiev vai enfrentar para conseguir que um grupo tão heterogêneo chegue a um acordo sobre uma proposta para a Rússia.
Ao Correio, Olexiy Haran, professor de política comparada da Universidade Nacional de Kyiv-Mohyla, questiona a posição das potências. "Estamos decepcionados com algumas posições de países, incluindo o Brasil, entendendo as pressões da Rússia e da China".
Ele afirma que, como a Rússia não cumpriu as resoluções, deve-se buscar métodos alternativos. "As cúpulas de paz globais fornecem outra plataforma diplomática para pressionar a Rússia. Não temos certeza de sua eficácia, mas devemos explorar todas as possibilidades. Precisamos de pressão internacional contínua".