Dezenas de organizações que defendem os direitos dos povos indígenas no Brasil divulgaram, nesta quinta-feira (20), uma nota pública condenando o parecer vinculante da Advocacia-Geral da União (AGU), aprovada pelo presidente golpista da República, Michel Temer. A medida obriga todos os órgãos da administração federal a considerar que as comunidades indígenas só têm direito aos seus territórios caso estivessem em posse deles no dia da promulgação da Constituição Federal, 6 de outubro de 1988.
Publicado no Diário Oficial da União (DOU), o parecer exige o cumprimento da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Ação Popular PET nº 3388/RR (caso Raposa Serra do Sol), que fixou o entendimento desse marco temporal. No entanto, juristas, militantes e antropólogos criticam a validade da decisão, alegando que não há jurisprudência para sua aplicação em outros processos de demarcação.
Em um texto publicado no site do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), o jurista e professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Dalmo de Abreu Dallari, considerou a ação uma "farsa jurídica" com o objetivo de "extorquir das comunidades indígenas seus direitos às terras que tradicionalmente ocupam". Dallari alegou que o aparecer não se enquadra em nenhuma hipótese para ser vinculante (ou seja, uma norma que precisa ser seguida), uma vez que no seu entendimento é apenas opinativo.
O caso Raposa Serra do Sol, que teve seu decreto de demarcação assinado pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 15 de abril de 2005, tratava-se de uma área que abriga 194 comunidades, com uma população de cerca de 19 mil indígenas de cinco povos diferentes. De acordo com Gilberto Vieira dos Santos, Secretário Adjunto do Cimi, a decisão polêmica foi direcionada pela própria justiça apenas a esse caso específico.
"O parecer procurou fundamentar o marco temporal de forma falsa, fazendo uma pinçada de decisões do Supremo que corroboram com os argumentos utilizados. Procuraram criar um ambiente de constrangimento com os próprios Ministros do Supremo, excluindo inclusive decisões totalmente contrárias que foram tomadas por eles", afirma Santos. Ele ressalta ainda que "não é algo consolidado, não existe jurisprudência para isso. O próprio Supremo Tribunal Federal já se manifestou dizendo que o argumento de Raposo da Serra do Sol está restrito para àquela terra indígena. Para nós, isso é visivelmente uma manobra do governo e da bancada ruralista", opinou.
Marco Temporal
Para Luiz Henrique Eloy, indígena da etnia Terena e advogado da articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a tese do marco temporal pode ser considerada uma "falácia jurídica" e prejudicaria muitos povos indígenas que já haviam sido expulsos de suas terras na data da promulgação da Constituição.
"A Constituição trabalha no sentido de reconhecer direitos originários, anteriores a qualquer outro. Ela não tem a ver com tempo e sim com o modo como as comunidades lidam com seu território, uma extensão social e cultural desses povos. Impor um requisito temporal teria um impacto imediato. Há várias comunidades fora de seus territórios, como os Guarani Kaiowá. A Constituição veio logo após a ditadura, quando os indígenas sofreram muitas violações, principalmente remoções forçadas, feitas pelos braços estatais e elites regionais. Então, como exigir que as comunidades estivessem em suas terras nessa época?", questionou.
A opinião é compartilhada pelo antropólogo Spensy Pimentel, fundador e coordenador do Fórum sobre Violações de Direitos dos Povos Indígenas (FVDPI), que explica que a discussão sobre o marco temporal é antiga e utiliza argumentos infundados: "A raiz do absurdo é que muitas populações indígenas foram simplesmente retiradas de suas terras em um período anterior ao da Constituição. Querem apresentar a Lei do Marco Temporal de um jeito 'bonito', dizendo que com a regra atual, os indígenas poderiam reivindicar todas as terras do Brasil, mas na prática há regiões específicas onde ocorrem conflitos há décadas, e é possível localizar de forma evidente os períodos do século XX em que as populações indígenas foram retiradas à força dali", ressalta.
Bancada Ruralista
A decisão do parecer já havia sido anunciada pelo deputado Luis Carlos Heinze (PP-RS), um dos principais nomes da bancada ruralista na questão da demarcação, em um vídeo publicado no seu Facebook no próprio dia 20. Ele afirmou que a medida deve impactar cerca de 90% dos processos em tramitação no governo, que, na sua opinião, estão "totalmente irregulares nas questões do marco temporal".
Para Gilberto Vieira dos Santos, a forma como o parecer foi anunciado "sinaliza a concreta articulação da bancada ruralista com o governo Temer". "Desde que Temer assumiu o poder, deu início a ações que vão configurando e tornando claro essa articulação, onde o alvo é o retrocesso no que diz respeito aos direitos territoriais desses povos", disse.
Segundo Luiz Henrique Eloy, a decisão é uma forma de recado do poder executivo para o judiciário, ratificando sua posição favorável à tese que, para ele, "reduz o direitos dos povos indígenas". Isso porque, uma sessão extraordinária marcada pela presidenta do STF, Cármen Lúcia, para o dia 16 de agosto, irá analisar três processos de demarcação de terra. "No nosso entendimento, o executivo está antecipando a decisão ao baixar esse parecer".
Mobilizações
Eloy destaca ainda que o movimento indígena pretende organizar mobilizações contra a decisão. "Nós temos levado essas questões às instâncias internacionais, pois no âmbito nacional não temos viabilidade de reverter essas decisões", apontou. Já a nota pública dos movimentos indigenistas solicita ao Ministério Público Federal (MPF) a suspensão dos efeitos do parecer.
"Cabe justamente ao MP acompanhar essas demandas, então pedimos para que ele se manifeste. Já vimos manifestações de alguns povos — dos Guaranis de São Paulo e de Santa Catarina — se mobilizando justamente porque estão vendo seus direitos irem para o ralo", afirmou Gilberto Vieira dos Santos. Para Spensy Pimentel, entretanto, a decisão final segue nas mãos da justiça: "A palavra que está faltando é somente a do STF", concluiu.
Em nota enviada por sua assessoria de imprensa, a AGU destacou que o parecer "de forma alguma representa retrocesso na demarcação de terras indígenas". "Ao contrário, vai promover segurança jurídica a esta importante política pública, na medida em que reconhece e determina a aplicação do que já foi decidido pelo Judiciário. Ele não desconhece o histórico de ocupação indígena no país, simplesmente acatou o posicionamento do STF e acolheu os entendimentos firmados".