23/07/2017 às 08h04min - Atualizada em 23/07/2017 às 08h04min

Me dá pena, pena pelo Brasil, diz Mujica sobre manobra para salvar Temer na Câmara

É um cenário que coloca o Brasil, na visão internacional, como uma república muito desprestigiada

Por BBC Brasil

O ex-presidente do Uruguai e atual senador José 'Pepe' Mujica, de 82 anos, classifica como "triste" o fato de que se tenha trocado integrantes da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara para garantir a rejeição do parecer que recomendava o avanço da denúncia por corrupção passiva contra Michel Temer.


"Tudo isso é muito triste. É um cenário que coloca o Brasil, na visão internacional, como uma república muito desprestigiada. O Brasil não merece isso", afirma em entrevista à BBC Brasil. É, diz, algo que lhe faz sentir "pena".


"Me dá pena. Pena pelo Brasil por ver o que aconteceu com uma comissão que estava estudando as eventuais acusações, em que tiveram que mudar a composição dessa comissão. E tudo indica que houve muita influência para poder colocar gente que não decepcionasse o governo."

Na conversa por telefone, o ex-líder uruguaio afirma que não acredita em nenhuma das acusações contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, critica o sistema de delações premiadas, fala sobre a polarização política no Brasil e disse que as reformas do governo Temer representam "mais de 50 anos de atraso". Além disso, aponta o que vê como um avanço do "falso moralismo" no país.


Confira a seguir os principais trechos da entrevista.


BBC Brasil - Qual é a sua opinião sobre o Brasil hoje? O ex-presidente Lula, que o senhor costuma elogiar, foi condenado, em primeira instância, a nove anos e meio de prisão. E a sociedade parece bem dividida politicamente.
José 'Pepe' Mujica - Eu acho que o que está acontecendo no Brasil hoje tem antecedentes. Eu não posso separar isso da forma como expulsaram Dilma Rousseff da Presidência.


BBC Brasil - Por quê?


Mujica - Porque é evidente que no Brasil tudo ganhou um tom conspirativo de extrema-direita que está atropelando um conjunto de conquistas e melhoras sociais. E há uma onda regressiva no campo trabalhista para os trabalhadores, isso é um problema sério.


Acho também que existe uma direita muito conservadora que está utilizando, entre outras coisas, a influência de mecanismos da Justiça, tentando frear toda possibilidade de resposta progressista ou mais ou menos a favor da grande maioria.


Atacar Lula, da maneira como o estão atacando, é impressionante. Colocam a eventual venda de um apartamento em uma praia... (o tríplex no Guarujá). Para um homem que foi presidente durante oito anos da principal potência da América Latina e com o antecedente da retirada de Dilma Rousseff do governo... realmente tudo isso gera a imagem de um Brasil muito doente.


E, além disso, aprovam um conjunto de reformas que vão para o passado, (anulando) as medidas que foram implementadas por Getúlio Vargas, que foi um presidente inesquecível e se suicidou por causa da pressão da oligarquia. É como se o Brasil estivesse voltando aos seus piores tempos.


BBC Brasil - O senhor acha...


Mujica - (interrompe) Olha, eu mantenho minha fé no Lula. Eu o conheço há muitos anos. O acusam por um sítio. Uma vez estive no sítio e é muito simples, com uma casinha. Além disso, tem outra coisa, ninguém coloca ênfase no papel das empresas. Parece que as empresas são pecadoras e isso está virando moda no mundo.


BBC Brasil - Como assim? O senhor pode explicar?


Mujica - Por exemplo, a Volkswagem pode organizar uma farsa de caráter internacional (no caso dos carros com um programa que reduzia as emissões de gases poluentes dos motores em testes regulatórios), pagar multas de milhões de dólares, e ninguém vai preso. E as empresas continuam enormes. E aqui na América Latina as empresas servem como que para destroçar a confiança pública.


Tudo isso que está acontecendo no Brasil acaba interrompendo, no longo prazo, a esperança em uma sociedade. E na vida dos homens, das mulheres, das sociedades, precisamos ter esperança. O Brasil está cultivando o não acreditar em nada. E depois disso o que vem? O niilismo? O golpe de Estado?


Uma coisa é ser de direita e outra, conservador. O que há no Brasil está com cara de falso moralismo, e o fascismo na Europa se apresentou com cara de falso moralismo também.


BBC Brasil - Mas o senhor acha que pode ocorrer um golpe de Estado no Brasil hoje?


Mujica - É que no lugar de se utilizar militares para golpes de Estado, agora se utilizam os subterfúgios jurídicos para a mesma coisa. E isso me provoca imensa dor porque o Brasil é muito importante para toda a América Latina.
 

BBC Brasil - Qual a sua opinião sobre o juiz Sergio Moro, que condenou o ex-presidente Lula?


Mujica - Acho que ele está trabalhando no compasso desses setores ultraconservadores e, na verdade, o que se percebe é que pretendem fechar o caminho para a candidatura de Lula, porque de outra forma é difícil que possam evitar que ele vença.


E isso não soluciona o problema endêmico que o Brasil tem, que é um sistema político muito perigoso, com mais de 30 partidos políticos. Ninguém tem a maioria. Cada lei é uma negociação à parte. Então, em vez de ser um parlamento, o Congresso acaba virando uma bolsa de valores.


Isso é um problema de caráter constitucional. Não se pode governar um país com esse mosaico de partidos onde cada qual luta por seu próprio interesse e tudo se transforma em negociações. É um problema grave para o Brasil e, portanto, para nós também. Nosso pequeno país fica no meio de um sanduiche, ao lado de dois países grandes (Brasil e Argentina) em crise.


BBC Brasil - Mas o ex-presidente Lula e seu partido, o PT, também fizeram alianças com outros partidos, como o PMDB, do agora presidente Michel Temer.


Mujica - Pois é, é como juntar o céu com o inferno. Mas esta é a situação do Brasil.


BBC Brasil - Está marcada para o próximo dia 2 de agosto uma votação na Câmara que poderia definir o destino do presidente Temer...


Mujica - Me dá pena. Pena pelo Brasil por ver o que aconteceu com uma comissão (a Comissão de Constituição e Justiça) que estava estudando as eventuais acusações, e tiveram que mudar a composição dessa comissão. E tudo indica que houve muita influência para poder colocar gente que não decepcionasse o governo.


Tudo isso é muito triste. É um cenário que coloca o Brasil, na visão internacional, como uma república muito desprestigiada. O Brasil não merece isso.


BBC Brasil - Segundo pesquisas recentes, o governo Temer é bem avaliado por cerca de 7% dos brasileiros e mantém a agenda de reformas no Congresso Nacional...


Mujica - É um retrocesso. Porque, por exemplo, os trabalhadores rurais, tão importantes no Brasil, vão ficar praticamente sem aposentadoria. Porque ter que trabalhar esse montão de anos é praticamente impossível para uma vida normal. Eu acho que estão caminhando para mais de 50 anos de atraso.


O Estado tem um papel fundamental na distribuição da riqueza e precisa ajudar as pessoas. Temos que saber que o capitalismo é formidável para gerar riqueza, mas não é formidável para distribuir riqueza. O Estado tem que intervir para que não sejam criados bolsões de extrema pobreza e de miséria, com medidas que possam distribuir e mitigar o que o mercado não pode fazer.


Por um lado existe um mundo que floresce quando a economia cresce, mas existe outro que vai ficando marginalizado da civilização. E o Estado tem que buscar reduzir essa contradição. E o Brasil está fazendo exatamente o contrário.

BBC Brasil - Mas os defensores das reformas afirmam que elas vão gerar mais empregos e mais investimentos no país.


Mujica - Esse é um velho mito que existe - de que é preciso reduzir os impostos aos mais ricos para fomentar sua ambição e que com isso vão investir e vão aumentar o trabalho. Mas, na verdade, é preciso levar em conta o salto tecnológico contemporâneo. Ou seja, multiplica-se a riqueza, mas não necessariamente os postos de trabalho.


A riqueza pode aumentar, e também o desemprego. E no caso do Brasil isso é evidente. O Estado tem que funcionar como escudo dos mais pobres, ou haverá uma polarização da riqueza na sociedade, e a concentração excessiva da riqueza acaba se transformando, indiretamente, em poder político a favor da riqueza.


BBC Brasil - O senhor acha que o ex-presidente Lula pode ir preso? Ou que ele pode chegar a não ser candidato?


Mujica - Sim, e isso me preocupa. E acho que a candidatura dele seria uma forma de colocar nos trilhos, institucionalmente, uma crescente oposição a estas políticas, mantendo as regras da democracia representativa e sua garantia fundamental. E tudo isso (que hoje envolve Lula) pode ser que nos leve a um arrependimento no futuro.


BBC Brasil - Hoje o ex-presidente Lula lidera as projeções para as eleições de 2018. No entanto, o país está bastante polarizado. A possível eleição dele não poderia intensificar este quadro?


Mujica - A polarização é um perigo. E Lula sabe disso. Mas Lula é um homem negociador. Por isso chegou onde chegou. Certamente Lula é o político mais maduro que o Brasil tem para poder orquestrar um freio nessa polarização. Mas concordo com sua pergunta e acho também que a polarização é um veneno na América Latina.


O problema da polarização é que faz com que metade do país fique contra a outra metade. Além disso, existe a polarização social. Aqueles que saíram da pobreza e voltam à pobreza são candidatos a participar dessa polarização.


Quando alguém é muito pobre, isso costuma gerar uma cultura de resignação à pobreza. Mas quando essa pessoa melhora de vida e depois tem que voltar à pobreza, é a historia da rebeldia. A rebeldia surge daqueles que, estando menos pobres, têm que retroceder. Hoje existe egoísmo demais.


BBC Brasil - De parte de quem? Dos políticos? De setores da sociedade?


Mujica - Nas sociedades modernas, funciona cada vez mais o egoísmo e menos a solidariedade. É um problema contemporâneo.


BBC Brasil - Mas o senhor não acredita em nenhuma das denúncias contra o ex-presidente Lula? Ele enfrenta cinco processos no âmbito da operação Lava Jato.


Mujica - Eu não acredito em nenhuma delas. Além disso, aconteceram coisas que não podemos esquecer. O tesoureiro do PT (Paulo Ferreira) foi condenado e depois o liberaram porque não havia provas.


E esse regime de delação premiada, inventado pelo fascismo, que vem da época do Mussolini, é uma bomba prestes a explodir.


BBC Brasil - Por quê? O regime não possibilita que casos de corrupção sejam desvendados?


Mujica - É muito difícil poder separar a verdade da mentira. Essas pessoas, quando se veem perdidas, recorrem a qualquer coisa. Para mim, é um recurso retrógado do sentido liberal da Justiça.


BBC Brasil - Qual a sua opinião sobre o possível futuro do Brasil e da região no contexto atual?


Mujica - Minha querida, o futuro é o mais difícil de se prever. Mas existem mudanças muito fortes que temos que ver como repercutem.


BBC Brasil - Que mudanças?


Mujica - O eventual isolamento que os Estados Unidos estão assumindo ao se retirar da tentativa do Acordo do Pacífico é algo histórico. Ao mesmo tempo, é evidente que a China entendeu esse contexto perfeitamente e está fazendo o que tem que fazer a favor dos seus interesses.


Parece que a Europa quer despertar e começa a olhar para a América Latina. A China virou o principal comprador dos produtos da América Latina, e não se deve estrategicamente depender só de um. E a Europa, que culturalmente estava mais perto da nossa região, tinha nos isolado.


O isolamento e a atitude que os Estados Unidos assumem agora pode levar a Europa a abrir os olhos para outras partes do mundo. E nada disso ocorria há cerca de um ano.


BBC Brasil - Esse possível novo quadro pode ser positivo para a região?


Mujica - É preciso lembrar aquele ditado que diz "não há mal que não seja para o bem".

BBC Brasil - Nesta sexta-feira se reúnem os presidentes do Mercosul, na reunião semestral que está sendo realizada em Mendoza, na Argentina. Hoje os presidentes são Temer, do Brasil, Macri, da Argentina, Horacio Cartes, do Paraguai, e Tabaré Vázquez, do Uruguai. Antes, o Mercosul parecia ter outro perfil com o senhor, Lula, Dilma, Fernando Lugo, Cristina Kirchner...


Mujica - Eu acho que a América Latina, por sua história, tem um montão de países, mas ainda não conseguiu construir sua nação. Teremos a nação (América Latina) quando formos capazes de nos integrar. Precisamos de integração para ter massa crítica.


E acho que todos os gestos que nos ajudem para que nos juntemos - sejam de esquerda, de direita ou de centro - temos que apoiar, e apoiar com entusiasmo, porque o mundo está se organizando em gigantescas comunidades e os latino-americanos estão pulverizados. Espero que os que hoje estão no Mercosul saibam da responsabilidade que têm.


BBC Brasil - Na Venezuela, foi realizada uma consulta popular sobre a Constituinte promovida pelo governo Nicolás Maduro, que teve mais de 7 milhões de participantes, segundo organizadores. E a eleição para a Assembleia Constituinte ocorre no final deste mês...


Mujica - Na Venezuela, estão todos muito exaltados e sem diálogo, e essa é a pior parte. Eles não atacam o principal problema, que é o econômico, resultado de depender de um produto só.


BBC Brasil - O petróleo.

 

Mujica - Isso. E isso não se ajeita nem com discursos e nem com manifestações. É necessária uma política de trabalhar na terra, de produzir alimentos. Se a Venezuela (o país importa quase tudo o que consome) não resolver o problema agrário, qualquer regime que o país tenha e sendo o petróleo caro ou barato, terá dificuldades.


BBC Brasil - A região pode ajudar de alguma maneira? Hoje o presidente Nicolás Maduro conversa com o presidente Juan Manuel Santos, da Colômbia. Estaria conversando também com o senhor?


Mujica - Tentei conversar com ele, mas não tive sorte.


BBC Brasil - Por quê? Ele não atendeu sua ligação?


Mujica - Sim, atendeu, mas... (sugere que o presidente não lhe deu ouvidos). Na Venezuela, parece que cada um tem seu jeito, seu capacete, e não há lógica política.


BBC Brasil - Na última quarta-feira começou a venda de maconha nas farmácias do Uruguai, uma medida aprovada pelo seu governo. Como foi o início?


Mujica - Espetacular. Bom até demais (os estoques das farmácias autorizadas esgotaram no primeiro dia, segundo a imprensa uruguaia).


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