A partir de agora, as organizações não governamentais (ONGs) que atuam na Venezuela estarão obrigadas a cumprir normas de prestação de contas ao Ministério do Interior, sob pena de multas. A Assembleia Nacional Bolivariana da Venezuela, de maioria esmagadora chavista, aprovou uma lei interpretada pelas entidades de sociedade civil como uma agressão aos direitos civis e às liberdades individuais, além de uma tentativa de controlar a oposição. A medida se insere em um pacote de leis solicitadas pelo presidente Nicolás Maduro — uma das legislações, que propõe "punir o fascismo", será debatida na próxima semana.
De acordo com o jornal El Nacional, a Assembleia Nacional também concordou em incluir na legislação a proibição para que as ONGs recebam aportes financeiros para "financiamento do terrorismo". A modificação foi proposta pelo deputado Diosdado Cabello, número dois do chavismo. O parlamentar justificou que algumas organizações aplicam dinheiro recebido em guarimbas, como são chamadas na Venezuela as manifestações de caráter violento. O regime de Maduro qualificou algumas ONGs como "fachadas para o financiamento de atividades terroristas". O Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos tinha solicitado às autoridades venezuelanas que interrompessem a aprovação "de leis que minem o espaço cívico e democrático".
Para Rafael Uzcátegui, coordenador geral da ONG Programa Venezuelano de Educação e Ação em Direitos Humanos (Provea), uma das ONGS mais respeitadas de Caracas, o regime de Maduro pretende acabar com a sociedade civil independente. "A Venezuela seguirá os passos da Nicarágua e colocará à margem da lei os ativistas e defensores dos direitos humanos, empurrando-os para o exílio", afirmou ao Correio.
"Vemos essa lei com muita preocupação, pois ela se inscreve dentro do marco de repressão à sociedade civil venezuelano. O fato de ter sido aprovada depois das eleições de 28 de julho sugere um gesto que é parte da agenda repressiva. Querem calar as vozes críticas e independentes da Venezuela", desabafou à reportagem, por telefone, Alí Daniels, advogado e codiretor da ONG Acceso a la Justicia (em Caracas).
Ele explicou que, antes da lei, quando um grupo de pessoas tentava registrar uma organização no país, as autoridades devolviam a solicitação e as impediam de fazê-lo, sob a justificativa de que o estatuto incluía palavras proibidas, como "direitos humanos". "Isso prova que sempre existiu um fechamento dos espaços cívicos. A situação vai piorar. A lei obrigará todas as organizações, inclusive as existentes, a se inscreverem novamente, sob pena de perder a nossa personalidade jurídica. Ficaremos à mercê do governo, que decidirá qual ONG será legalizada e quando", lamentou Daniels.
Ainda de acordo com Daniels, nem mesmo organizações mais vocais, como a Provea, poderão apelar aos tribunais. "Na Venezuela, o Poder Judiciário não é imparcial nem independente. Os juízes não julgam, mas obedecem. Corremos o risco de sairmos piores do que entramos, caso recorramos ao Tribunal Supremo de Justiça", disse o advogado e codiretor do Acceso a la Justicia. "Uma das organizações está em grande perigo, o Cedice, que defende ideias liberais. Segundo a lei, não poderão ser registradas entidades com ideias 'fascistas' — como o conservadorismo moral e o neoliberalismo. "A ONG Cedice atua há mais de 40 anos de serviços prestados à sociedade venezuelana. Ela poderá se tornar ilegal e seus membros poderão ser perseguidos e sujeitos a uma pena de 8 a 12 anos", acrescentou Daniels. A reportagem entrou em contato com a Cedice, mas a fonte alegou que preferiria não dar entrevistas, por motivos de segurança.
O QUE DIZ A NORMA
A normativa obriga as organizações não governamentais e organizações sem fins lucrativos a se inscreverem em um registro local e fazer uma "uma relação das doações recebidas com plena identificação dos doadores, informando se eles são cidadãos do país ou estrangeiros". Tudo sob a supervisão do Ministério do Interior. O descumprimento acarreta multas que podem chegar a US$ 10 mil (R$ 55 mil). A lei foi proposta por Diosdado Cabello, número dois do chavismo, em janeiro de 2023. Ele acusou mais de 60 organizações de "desestabilizar" a Venezuela.