Algumas horas após ato pró-anistia na Avenida Paulista em que defendeu o retorno de Jair Bolsonaro (PL) à presidência da República e criticou a alta no preço dos alimentos, o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), anunciou, na última segunda-feira, uma parceria com o governo Lula (PT) para construir 30 mil moradias a juros subsidiados com financiamento da Caixa Econômica Federal no estado. O governador, como se sabe, é cotado para aglutinar o campo da direita em uma disputa contra o petista em 2026 caso o padrinho político continue inelegível na Justiça.
No anúncio de segunda-feira, o governo federal foi representado pelo ministro das Cidades, Jader Filho (MDB). No ano passado, Tarcísio apadrinhou o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes (MDB), e se aproximou do presidente da sigla, o deputado federal Baleia Rossi, que também compareceu ao evento no Palácio dos Bandeirantes, mas parte gorda do partido segue com Lula. Do lado do PT, o deputado estadual Simão Pedro marcou presença. Foi cumprimentado publicamente pelo governador.
O aditivo de contrato assinado pelos dois lados prevê a complementação de R$ 600 milhões em recursos do estado para atender a faixa 1 do Minha Casa, Minha Vida (MCMV), destinada a famílias de baixa renda. O Planalto afirma que a parceria potencializa o programa federal e representaria a superação de desavenças ideológicas para o atendimento da população.
— Só é possível se houver diálogo, se a gente transformar o pacto federativo e puder conversar, mesmo se estivermos em campos opostos — afirmou Jader Filho.
Por outro lado, o ministro também fez questão de destacar o investimento federal na área de habitação do estado, de R$ 73,5 bilhões e 380 mil moradias contratadas. Lembrou que o edital para a construção do túnel submerso entre Santos e Guarujá também só foi possível graças ao "acerto entre os dois governos". Na ocasião, Lula e Tarcísio compartilharam o palco em clima amistoso.
O governador paulista, por sua vez, afirmou no anúncio que a meta de construção de 200 mil unidades habitacionais até 2026 deve ser batida, em discurso que teve como mote a imagem de "gestor eficiente". Tarcísio afirmou que o programa equivalente em nível estadual, o Casa Paulista, já entregou 52 mil moradias e outras 97 mil estão com obras em andamento. O restante será realizado por meio da parceria firmada ontem, que envolve ainda aportes de R$ 300 milhões em subsídios para financiamentos da caixa via FGTS, e novos lançamentos previstos até o final do ano que vem, na ordem de 28 mil unidades.
Um dia antes, ao discursar no ato pró-anistia aos envolvidos nos ataques de 8 de janeiro, convocado por Bolsonaro na Avenida Paulista, o governador criticara a inflação dos alimentos e defendera o retorno do ex-presidente ao cargo. Diferentemente da manifestação anterior em Copacabana, no Rio, contudo, Tarcísio ajustou o discurso. Não criticou diretamente o julgamento do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) que tornou o ex-presidente inelegível e evitou associá-lo novamente a "uma conspiração envolvendo o PT."
— Tive o privilégio de fazer parte do governo do maior presidente que este país já teve e ver as entregas — afirmou, acenando para Bolsonaro e mais uma vez auto-celebrando o "gestor".
Histórico de crises e afagos
Como foi mostrado pela imprensa, após o ato de Copacabana, o governo Tarcísio é marcado por um vaivém de acenos à base mais radical de apoio do ex-presidente e a setores moderados e de centro.
— Tarcísio está obrigado a fazer um protagonismo estranho. Ele tem que parecer bolsonarista e não tão moderado como realmente é de fato. Ao mesmo tempo, também não pode radicalizar demais — avalia o cientista político José Álvaro Moisés. Ao legitimar a possibilidade de Bolsonaro ser candidato em 2026, aponta o professor da USP, o governador paulista lança as próprias bases para ser o herdeiro político do ex-presidente nas urnas.
Rotulado de forasteiro e com domicílio eleitoral fixado de última hora em São José dos Campos, no Vale do Paraíba paulista, antes das eleições de 2022, o carioca Tarcísio deve a sua ascensão política a Bolsonaro, de quem foi ministro da Infraestrutura. Ele, aliás, não precisou nem tomar posse para ser lembrado disso. Em dezembro daquele ano, o governador eleito recebeu uma avalanche de críticas ao dizer em uma entrevista que jamais foi “bolsonarista raiz”. E que, apesar de comungar da agenda econômica liberal e ser contra o aborto e liberação das drogas, não tinha a intenção de “entrar em guerras ideológicas e culturais”. Mas o político teve que ir em seguida às redes sociais para reafirmar a “admiração e gratidão” ao ex-presidente.
Na prática, Tarcísio de fato escolheu a dedo suas pautas. Não demonstrou interesse em negacionismo climático, posturas antivacinas e ataques ao Judiciário. No entanto, não deixou de fazer afago à ala mais radical do bolsonarismo ao comprar a briga de implementar escolas cívico-militares no estado após o fim do programa em nível federal. Assim como ao delegar a área da segurança pública a Guilherme Derrite (PL), deputado federal transferido da Rota por excesso de mortes em serviço.
Nem mesmo uma crise na segurança pública, com o assassinato de um delator do Primeiro Comando da Capital (PCC) em plena luz do dia no Aeroporto de Guarulhos e uma série de abusos policiais flagrados em vídeo foram suficientes para Tarcísio trocar o secretário bolsonarista. Ele recuou, contudo, da sua postura reticente ao uso de câmeras corporais por agentes da Polícia Militar e admitiu "problemas na corporação".
Ainda nos primeiros meses de mandato, o governador precisou conter uma rebelião de deputados bolsonaristas na Assembleia Legislativa, insatisfeitos com sua postura na pauta de costumes, o ritmo de liberação de emendas e o nível de influência do secretário de governo, Gilberto Kassab (PSD). Outra controvérsia foi aberta quando optou por apoiar a reforma tributária defendida pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad (PT), mesmo com Bolsonaro fazendo campanha aberta contra. A decisão rendeu um puxão de orelhas público em entrevista de Bolsonaro à época: Tarcísio é “um baita de um gestor”, alegou o ex-presidente, mas que, “politicamente, dá suas escorregadas”.
O desconforto foi amenizado com novos acenos ao bolsonarismo. Tarcísio fez parte, por exemplo, da comitiva bolsonarista na posse do presidente argentino, Javier Milei. E, diante do episódio de maior tensão, quando apareceu sorridente no evento ao lado de Lula em Santos, em fevereiro de 2024, uma manifestação na Avenida Paulista, em seguida, serviu para o equilibrista colocar panos quentes na situação.
— Você não é mais um CPF. Você não é mais uma pessoa. Você representa um movimento. Você representa todos eles que aprenderam, que descobriram, que vale a pena brigar pela família, pela pátria, pela liberdade — disse o governador sobre Bolsonaro.
Mais do que o discurso, a presença já contava muito. Bolsonaro recém havia sido indiciado pela Polícia Federal no inquérito da trama golpista no Planalto, pelo qual ele viria a ser denunciado este ano como líder do grupo.
No caso do Judiciário, apesar de não defender a atuação de ministros do Supremo, Tarcísio também apareceu em clima amistoso com o ministro Alexandre de Moraes em evento público. A nomeação de Paulo Sérgio Oliveira e Costa para Procurador-Geral de Justiça em São Paulo teve influência de Moraes e de Kassab. O pastor evangélico Silas Malafaia, um dos críticos mais virulentos ao STF, chegou a dizer que os movimentos de Tarcísio o deixavam “com pé atrás” sobre seu comprometimento com o bolsonarismo.
Mas o Tarcísio equilibrista reapareceu novamente na posse do presidente americano, Donald Trump, em janeiro deste ano. O recado veio nas redes sociais, onde Tarcísio apareceu, de forma arriscada (São Paulo será um dos estados que perderá mais decisivamente com as tarifas de 10% aplicadas pelo republicano ao Brasil), com o boné vermelho de campanha com o slogan “Make America Great Again”.
O vaivém de acenos de Tarcísio ao bolsonarismo
SER OU NÃO SER: “Eu nunca fui bolsonarista raiz”, declarou em entrevista pouco antes de assumir o mandato para justificar que não entraria em “guerra ideológica e cultural” enquanto governador de São Paulo. A fala abriu uma crise na base de apoio e foi amenizada com postagem de “gratidão” a Bolsonaro.
MONTAGEM DO GABINETE: Tarcísio escolhe o presidente do PSD, Gilberto Kassab, desafeto do bolsonarismo, como secretário de governo, responsável pela articulação com os prefeitos. Ele acena à base ideológica com Guilherme Derrite na Segurança Pública e Sonaira Fernandes na pasta da Mulher.
REFORMA TRIBUTÁRIA: O governador paulista defende a aprovação da reforma tributária do governo federal, por entender que é uma medida econômica positiva. Bolsonaro faz campanha aberta contra, e os dois aparecem discutindo em uma reunião hostil do PL.
PROJETOS ESTADUAIS: Tarcísio enfrentou uma rebelião de deputados bolsonaristas na Assembleia Legislativa depois de liberar verba para parada gay, autorizar uma feira do MST e liberar a cannabis medicinal na rede de saúde pública. Em contrapartida, decidiu criar um programa de escolas cívico-militares.
EVENTOS PÚBLICOS: O governador compareceu sorridente a eventos ao lado do presidente Lula (PT) e do ministro do STF Alexandre de Moraes, as duas figuras mais detestadas pelo bolsonarismo. Em compensação, discursou em atos convocados por Bolsonaro na Av. Paulista e Copacabana e participou da comitiva para a posse do presidente argentino, Javier Milei.
CRISE NA SEGURANÇA: Tarcísio bancou o perfil linha dura na segurança pública e chegou a dizer que não estava “nem aí” para denúncias referentes aos altos índices de letalidade policial. Pressionado pela opinião pública e pelo STF, reconheceu que estava errado ao criticar a adoção de câmeras corporais pela PM e admitiu problemas.
ELEIÇÕES NA CAPITAL: O governador decide se engajar completamente na campanha de Ricardo Nunes (MDB) em São Paulo, mesmo com Bolsonaro aconselhando-o a manter distância. Recebe um cumprimento de “líder maior” do prefeito reeleito, e aliados falam que coligação virou ensaio para 2026.
TRUMP 2.0: Tarcísio surfa na popularidade do presidente americano, Donald Trump, e aparece no dia da posse colocando o boné com a inscrição “Make America Great Again”. Na mesma semana, anuncia conselho de combate a mudanças climáticas em São Paulo.