Crédito consignado privado exige cautela, alertam especialistas

Aprovada no Senado, MP que amplia crédito consignado preocupa economistas e parlamentares, que veem risco de superendividamento, uso indevido do FGTS como garantia e pressão sobre famílias de baixa renda já afetadas por inadimplência recorde

07/07/2025 08h05 - Atualizado há 1 dia
Crédito consignado privado exige cautela, alertam especialistas
Uso do FGTS como garantia pode comprometer a segurança previdenciária dos trabalhadores no futuro - (crédito: Joédson Alves/Agência Brasil)

A aprovação da Medida Provisória nº 1.292/2025, que amplia o acesso ao crédito consignado para trabalhadores com carteira assinada, microempreendedores e motoristas de aplicativo, gerou reações cautelosas entre economistas. Embora a medida seja considerada um alívio imediato para o orçamento de milhões de brasileiros, especialistas alertam para os riscos que ela pode representar no médio e longo prazo, tanto para as finanças das famílias quanto para a estabilidade da economia nacional.

Para o economista e professor da Fundação Getulio Vargas (FGV), Davi Lelis, a medida pode até oferecer um alívio imediato, mas tende a aprofundar distorções já recorrentes nas políticas econômicas do país. "Essa medida pode trazer um fôlego de curto prazo para algumas pessoas da população, para alguns trabalhadores, mas ela é muito delicada e perigosa no médio e no longo prazo", afirma.

Segundo ele, o problema está em incentivar o consumo sem ampliar a renda ou a capacidade produtiva. "Essa é uma medida de incentivo ao consumo, de incentivo à demanda. Não é um consumo saudável de longo prazo, é um consumo pontual que depois as pessoas vão ter que pagar", explica.

O economista lembra, ainda, que 76 milhões de brasileiros estão inadimplentes e que 78% das famílias convivem com algum tipo de dívida — quadro que, segundo ele, pode se agravar com a nova modalidade de crédito. "Você também piora esse lado do endividamento das famílias", alerta.

Outro ponto crítico levantado por Lelis é o uso do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) como garantia, o que compromete a segurança previdenciária dos trabalhadores no futuro. "Estão pegando um crédito de curto prazo às custas do que seria a aposentadoria de longo prazo (...) para pagar remédios, para pagar um home care, para pagar um tratamento de saúde, e lá na frente eles vão ter consumido esse crédito e não vão ter aposentadoria."

O economista e professor da Universidade de Brasília (UnB), César Bergo, afirma que a medida deve ser analisada sob três perspectivas: taxa de juros, direito de acesso ao crédito e educação financeira. Ele reconhece que o crédito consignado é mais barato que outras linhas de empréstimo, mas pondera que isso exige preparo e planejamento. "As pessoas têm que ter muita tranquilidade, ver que isso é uma oportunidade de colocar ali na prateleira, mas não sair tomando crédito desnecessariamente, porque não é a hora", aconselha.

Bergo também alerta para o comportamento do sistema financeiro, que deve aumentar sua pressão sobre esse novo público. "Infelizmente, os bancos vão cair em cima dessas pessoas, como caem hoje em cima do aposentado e do pensionista". Para o economista, o ideal seria vincular o acesso ao crédito à formação financeira. "O governo poderia colocar: você só vai ter crédito se apresentar o certificado de educação financeira", sugere.

Já o economista Masimo Della Justina vê na medida uma ferramenta que, se bem utilizada, pode realizar projetos familiares e integrar trabalhadores ao sistema financeiro formal, mas sem desprezar os riscos de exclusão futura. "O crédito consignado acaba sendo a realização de algum projeto econômico, algum sonho familiar ou individual que teria que aguardar anos ou talvez nunca ser realizado", disse.

Ele aponta, no entanto, que imprevistos podem comprometer a capacidade de pagamento, como perda do emprego, separações ou emergências de saúde. E adverte sobre o fenômeno do "azar moral", comum em análises econômicas: "Um percentual de pessoas que se endividam se encantam com o crédito fácil, sem julgar apropriadamente os compromissos lá da frente, e uma parcela acaba tendo seu CPF comprometido por questões de crédito."

Mesmo assim, Della Justina reconhece que o impacto imediato pode ser positivo para a economia local. "Esses empréstimos vão ser aplicados em alguma forma de consumo, de melhoria de moradia ou de qualquer outro compromisso, e acabam aquecendo a economia local, o comércio local", diz. O alerta final, porém, é direto: "Há que se julgar bastante os perigos dessa armadilha do crédito fácil."

Superendividamento

A MP do consignado privado está em vigor desde de março e foi aprovada no Senado, na semana passada, para não perder sua validade, e seguiu para sanção presidencial. O ministro do Trabalho, Luiz Marinho, considera a aprovação como uma “vitória para os trabalhadores”. “Cerca de 63% das operações estão concentradas em pessoas que ganham até quatro salários mínimos, e o Congresso reconheceu a importância desse programa para o trabalhador assalariado”, destaca.

Parlamentares argumentaram, no entanto, que a medida, embora vendida como política de inclusão financeira, pode representar uma ameaça à estabilidade econômica das famílias mais vulneráveis. Entre os principais pontos de discordância estão o uso do FGTS como garantia, os juros mensais praticados e o risco de endividamento em massa num cenário de inadimplência recorde no país.

O senador Rogério Marinho (PL-RN) chama atenção para os riscos macroeconômicos da medida, apontando que ela pode agravar a situação fiscal do país ao estimular artificialmente o consumo em um cenário de alto endividamento. “Estamos falando, senhores, de um recorde de 70,3 milhões de pessoas endividadas no Brasil. Quase 45% dos adultos brasileiros estão negativados”, afirma.

Para Marinho, o uso do FGTS como garantia e a ampliação da oferta de crédito podem acelerar o superendividamento da população. “Esse risco do superendividamento se acelera em função de mais um estímulo que é dado à economia, na contramão de um programa sustentável que nos exige racionalidade”, critica.

No dia em que o projeto foi aprovado, o senador Oriovisto Guimarães (Podemos-PR) fez um apelo direto à bancada governista, destacando a contradição entre o discurso de defesa dos trabalhadores e a política de incentivo ao crédito com juros elevados. “Não existe injustiça mais cruel do que obrigar um trabalhador a pegar um dinheiro que é seu, que fica preso no fundo de garantia e que é remunerado por uma remuneração ridícula, para tomar empréstimo de 4% ao mês”, afirmou.

De acordo com ele, a medida ignora o desequilíbrio entre o rendimento do FGTS — que é cerca de 4% ao ano — e os juros cobrados pelas instituições financeiras, reforçando a desigualdade no acesso ao sistema financeiro.

Flávio Bolsonaro (PL-RJ) também se posicionou de forma enfática contra a medida provisória, classificando-a como uma armadilha para os trabalhadores de baixa renda. “É uma grande injustiça, até uma covardia, sugerir que vai ser um bom negócio para esses trabalhadores que, via de regra, já estão superendividados”, declarou. Segundo ele, o governo abre uma “porta da desesperança” ao permitir que cidadãos já fragilizados economicamente contraiam novos empréstimos para pagar dívidas antigas. “As pessoas mais desesperadas acabam caindo nessa tentação e não conseguem pagar nunca mais essa dívida”, concluiu.

Teto de juros

A retirada do dispositivo que previa a transferência da competência sobre o teto de juros do crédito consignado para o Conselho Monetário Nacional (CMN) gerou críticas de parlamentares e acendeu um sinal de alerta entre economistas. A decisão monocrática do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), suprimiu o trecho do relatório final. A medida, no entanto, havia sido aprovada com apoio expressivo na comissão mista do Congresso.

Com a exclusão, a prerrogativa permanece sob responsabilidade do Conselho Nacional de Previdência Social (CNPS), órgão vinculado ao Ministério da Previdência e, segundo críticos, sujeito a pressões político-sindicais. Apenas no atual mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o teto do consignado já foi alterado 11 vezes — uma média de uma a cada 70 dias. Em contraste, entre 2006 e 2022, foram 13 mudanças em 16 anos, ou seja, uma a cada 470 dias.

A Frente Parlamentar pelo Livre Mercado (FPLM) considera a decisão um retrocesso e afirma que continuará mobilizada para restabelecer a proposta original. O deputado Gilson Marques (Novo-SC), membro da frente, classifica a manobra como um desrespeito institucional. “A exclusão de um dispositivo relevante, aprovado com amplo apoio na comissão mista, por decisão monocrática do presidente da Casa, é um claro desrespeito ao trabalho técnico realizado e, sobretudo, à Câmara dos Deputados”, afirma.

Na avaliação do parlamentar, a manobra esvazia o papel da Câmara e fragiliza o princípio do bicameralismo. “Quando alterações de mérito são feitas por atalhos regimentais para evitar a revisão da outra Casa, estamos diante de um enfraquecimento institucional que compromete a legitimidade do Congresso como um todo. Não se trata apenas de forma, mas de conteúdo: impedir que a Câmara se manifeste sobre um ponto sensível como a definição do teto de juros do consignado é negar a essência do bicameralismo e da boa legislação”, complementa.


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