Ex-ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e referência em crimes financeiros, Gilson Dipp atua hoje como advogado consultor para alguns dos mais importantes criminalistas do Brasil em processos da Lava Jato. Com a experiência de quem dedicou a carreira ao estudo do combate à lavagem de dinheiro e tendo atuado dos dois lados do balcão, Dipp não titubeia ao defender as delações premiadas, que classifica como “instituto essencial” para o combate às organizações criminosas. Sobre a polêmica envolvendo os delatores da JBS, Dipp atribui os problemas à velocidade com que o acordo foi feito e à dimensão que a Lava Jato tomou, levando a erros “involuntários”. O ex-ministro é enfático ao defender a validade das provas obtidas pelas delações. “Se tudo fosse considerado ilícito, a Polícia Federal teria a obrigação de devolver a mala de dinheiro para Rocha Loures, que teria o dever de recebê-la de volta”, provoca.
A delação premiada da JBS foi muito generosa?
ÉPOCA – A colaboração premiada já existia antes da Lava Jato. Qual a importância dela para o combate ao crime?
Gilson Dipp – O instituto da colaboração premiada é altamente necessário para a investigação de crimes complexos transnacionais, em especial para crimes praticados por organizações criminosas – sejam contra a administração pública ou de tráfico de pessoas e entorpecentes. O instituto é um instrumento de obtenção de provas altamente valioso. Mas implica um cuidado em sua aplicação. Até porque é um instituto novo para nós. Veio importado dos americanos e não houve uma readequação aqui no sistema legal e constitucional para abraçá-lo de forma isenta de problemas.
ÉPOCA – Por que as delações passaram a ser adotadas com tanta frequência nos últimos anos?
Dipp – A Lei 12.850 e a Lei Anticorrupção, que prevê o acordo de leniência, foram editadas com um dia de diferença. Uma foi no dia 1o de agosto; a outra, em 2 de agosto de 2013, logo depois das manifestações. Só que elas entraram em vigor em cima da Lava Jato, com todo o fervor dos acontecimentos... Então, elas entraram em aplicação em um momento único da vida brasileira. Consequentemente, o Judiciário foi obrigado a fazer uma interpretação delas no calor dos eventos. Isso não é bom para uma interpretação jurídica da lei. Acho que essas leis vão sofrer interpretações muito mais elaboradas a partir de agora.
ÉPOCA – Mas é possível combater, sem as delações, essas organizações criminosas complexas, com estruturas internacionais de lavagem?
Dipp – Não. Como eu disse no início, o instituto é essencial para o desvendamento de crimes complexos transnacionais de vários tipos – em especial contra a administração pública, em que o vestígio é muito pequeno. Agora, há delações que foram feitas mais rapidamente? Possivelmente sim.
ÉPOCA – Em relação à delação da JBS, como o senhor vê as polêmicas envolvendo o episódio?
Dipp – A discussão caiu em uma amplitude maior. A palavra do colaborador, mesmo rescindido o acordo, não é ela que vai ter problema. Isso não invalida nada, porque as provas produzidas continuam pertinentes. Sobre o fato de o procurador supostamente ter negociado a delação, o problema não é ele ter cometido alguma irregularidade. É o fato de que isso pode ter tirado um dos fatores essenciais da colaboração, que é a voluntariedade do colaborador.
ÉPOCA – Ao mesmo tempo que se tem uma omissão dos delatores, o acordo de delação levou os investigadores a ações controladas e a flagrantes de crimes. Como o Judiciário deve dosar essas duas situações?
Dipp – Primeiro ponto fundamental: delação não é prova. Partindo da premissa de que ela precisa ser corroborada por outros meios de prova decorrentes da delação, as provas continuam palpáveis. Elas não são anuláveis. As provas servem para instruir e utilizar-se em qualquer ação penal. A dosagem é o Judiciário que vai ter, e o próprio Ministério Público Federal precisa ter o cuidado absoluto de, ao negociar essas delações, ter a argúcia, a perspicácia de verificar se o cara está mentindo, omitindo. Isso é um dever. Não que seja infalível. Por isso, eu digo: delações apressadas, como foi essa e da Odebrecht, evidentemente têm problemas, e eles vão começar a aparecer, principalmente agora que há uma reação da classe política-empresarial em relação à Lava Jato.
“Uma mala de dinheiro, a conversa com o presidente Temer, esses fatos não podem ser apagados”
ÉPOCA – O acordo da JBS poderá ser rescindido? Joesley Batista e demais colaboradores podem ir para a prisão?
Dipp – O caso da JBS é um caso típico a ser provado de organização criminosa, que envolve várias pessoas. O que se critica do Joesley não é o fato de ele não ser preso. É que para ele se deu imunidade total, o que causa uma repulsa no cidadão comum. “Pô, eu faço tudo, conto tudo, pego o jatinho e vou para os Estados Unidos?” Esse é o problema, é a dosagem. Por outro lado, aqueles que ele denunciou, sobre quem ele trouxe provas, como exemplo o presidente Michel Temer, claro que isso não pode ser tratado de maneira diferente. Houve, pelo menos, o indício da prática de crimes decorrentes da delação.
ÉPOCA – No caso da gravação envolvendo o presidente Michel Temer, as provas devem continuar valendo?
Dipp – Eu não acredito na anulação, porque tudo isso foi feito para obter elementos de prova que viessem a beneficiar o delator. Uma mala, a conversa com o presidente, esse conteúdo, esses fatos não são apagados. Ou vai dizer que não houve a mala com o Rocha Loures? Ou que o presidente não conversou com o Joesley? Então, tudo isso não deve ser anulado, mesmo que se tenha um problema com a ação controlada. O que se pode questionar é a voluntariedade da colaboração. Mas aí quem será prejudicado é o colaborador. Mesmo que instigado na sua vontade pelo procurador em gravar, isso por si só não tira a legalidade da prova decorrente da delação. Se tudo fosse considerado ilícito, a Polícia Federal teria a obrigação de devolver a mala de dinheiro para o Rocha Loures e ele teria o dever de recebê-la de volta. É um exemplo grotesco, mas é assim.
ÉPOCA – A que o senhor atribui essa falha no episódio da JBS?
Dipp – O resultado das colaborações foi excepcional. Ninguém esperava tanto. Mas, acompanhando de fora, vejo alguns abusos e excessos. Isso é humano, decorre da grandiosidade da operação, da rapidez com que é preciso resolver. O aperfeiçoamento decorre disso. Em função da magnitude da investigação, o MP achou adequado o benefício da imunidade. Essa delação vai auxiliar o aperfeiçoamento judicial de investigação, de cuidado do Ministério Público. Porque, numa negociação rápida dessa, a Procuradoria não teve a perspicácia de perceber as omissões e aí foi surpreendida. A omissão foi do Joesley, mas a rapidez da negociação foi do Ministério Público.
ÉPOCA – Já tivemos a Operação Castelo de Areia, em que a tese de que um “fruto contaminado” pode anular todas as provas prevaleceu no STJ. A Corte, da qual o senhor estava afastado na ocasião, anulou toda a investigação. Há o risco de isso se repetir?
Dipp – Essa teoria já está ultrapassada. Pelo que tenho lido, a operação surgiu de uma denúncia anônima, e não de uma colaboração premiada. Mas no caso de qualquer ato investigativo que decorra de um ato reprovável, como denúncia anônima ou de uma colaboração mentirosa, as provas decorrentes desse ato podem ser obtidas e desvinculadas da colaboração.
ÉPOCA – Como garantir que o instituto da delação não seja prejudicado com a forte reação do mundo político?
Dipp – O instituto deve ser preservado precipuamente pelo Judiciário, que é o aplicador da lei; pela polícia e pelo Ministério Público, que são os atores da colaboração. A delação tem de ser feita estritamente nos moldes legais e parâmetros constitucionais, porque aí não deixa margem para que haja investidas contra ela. Mesmo assim, as investidas virão. Por isso, é necessário que se tenha o controle do cidadão, a manifestação, a pressão sobre os deputados. O Congresso que hoje está aí é capaz de tudo ou de nada, depende da balança que vier.
ÉPOCA – Passados três anos de Lava Jato, o saldo das delações premiadas foi positivo?
Dipp – Altamente positivo. Em função desse meio moderno de obtenção de provas, chegou-se a resultados inimagináveis: o processamento, julgamento e as condenações de pessoas que antes estavam acima e além da lei, grandes empresários e políticos. O que se discute agora é que o instituto deve ser aplicado estritamente dentro dos limites da lei, exatamente para que não seja enfraquecido.