Representantes da magistratura são negligentes quando, mesmo diante de indícios de fraude, assinam decisão dando suporte para o cometimento de ilícitos sem se preocupar com os impactos da ordem. Assim entendeu o Plenário do Conselho Nacional de Justiça, nesta terça-feira (12/12), ao condenar duas desembargadoras do Pará à pena de aposentadoria compulsória.
O problema, segundo os conselheiros, começou quando a então juíza Vera Araújo de Souza bloqueou R$ 2,3 bilhões do Banco do Brasil, em 2010, em ação de usucapião. O autor disse representar um correntista que havia recebido o valor três anos antes, em várias contas, sem ninguém reclamar o dinheiro de volta.
A petição inicial tinha quatro páginas e dois extratos bancários, mas foi considerada suficiente pela juíza. Dias depois, um advogado pediu desistência da ação e uma equipe de profissionais do banco — das áreas jurídica e de segurança — disse pessoalmente à julgadora que o dinheiro nunca foi depositado e que o processo envolvia um esquema de fraudes, com uso de documentos falsos já reconhecidos por outros juízos.
Vera Araújo só reconheceu a desistência dois meses depois. Enquanto isso, em segunda instância, a desembargadora Marneide Trindade Pereira Merabet rejeitou recurso da instituição financeira, ignorando a perícia que atestava a falsidade dos documentos apresentados, e manteve o bloqueio, impedindo a movimentação do valor bilionário.
Para o relator do caso no CNJ, conselheiro André Godinho, as duas violaram deveres da magistratura. “Nota-se exacerbada negligência da magistrada no seu dever de cumprir e fazer cumprir com serenidade e exatidão todas disposições legais, seja ao deferir a medida liminar nas condições já descritas, seja ao quedar-se inerte face às irregularidades a ela relatadas”, afirmou, sobre a conduta de Vera Araújo.
Godinho afirmou ainda que, quando a desembargadora “exarou sua decisão negando efeito suspensivo ao agravo de instrumento (...) já tinha conhecimento que a decisão inicial da então juíza (...) estava amparada em documento falso”, dando “suporte para o golpe orquestrado pela comprovada quadrilha de estelionatários”.
Segundo o conselheiro, a punição não tem o objetivo de reverter análise jurisdicional, entrando no mérito, e sim responsabilizá-las pelo comportamento sem cautela diante dos indícios de fraude, deixando de cumprir “com serenidade e exatidão as disposições legais e os atos de ofício”.
“Muito embora tenha manifestado entendimento no sentido de que não lhe cabia raciocinar sobre as eventuais possibilidades de aplicação pelo Banco do Brasil dos valores discutidos, (...) deveria ter despertado na experiente magistrada cautela excepcionais, além do seu senso de responsabilidade para questões como o perigo da demora inverso e o impacto de sua decisão no sistema financeiro nacional”, escreveu, sobre a antiga juíza.
Parcialidade
O relator também concluiu que Marneide afrontou o dever de imparcialidade, porque membros de sua família tinham proximidade com a quadrilha de estelionatários — em investigação criminal, quebra do sigilo telefônico identificou ligações para telefones da própria desembargadora, de seu marido e da irmã.
Ele afirmou, porém, que não há provas de vantagem indevida — embora a Receita Federal tenha apontado movimentação financeira irregular, Godinho concluiu que Marneide tomou empréstimos no período. O voto foi seguido por unanimidade. As duas desembargadoras estavam afastadas desde 2014.
Voz da defesa
Vera Araújo de Souza disse que não bloqueou nenhum valor, pois apenas proibiu a movimentação de somas existentes nas contas citadas, sem que houvesse risco da liberação dos valores para o autor ou para terceiros em simples liminar.
Marneide Trindade Pereira Merabet alegou que a decisão não causou prejuízos ao banco e foi tomada porque o pedido da instituição financeira tinha justificativa “deficitária”. Também negou qualquer participação no esquema.
Os advogados alegaram que o fato de o Superior Tribunal de Justiça ter decretado a prescrição da ação penal contra as magistradas deveria evitar a condenação de suas clientes no plano administrativo. Godinho, no entanto, disse que a natureza das acusações são distintas e sem vinculação.
A defesa tentou ainda invalidar as provas ao atribuir um dos números de telefone celular, encontrado na agenda de um dos estelionatários presos pelo golpe, a uma irmã da desembargadora Marneide, morta em 2013. Segundo conselheiro, “a magistrada não logrou êxito em apresentar justificativas plausíveis para desvencilhar-se de forma categórica das provas”. Com informações da Agência CNJ de Notícias.
0000880-65.2013.2.00.0000