01/04/2018 às 07h39min - Atualizada em 01/04/2018 às 07h39min

A suprema covardia do Supremo.

ALDO FORNAZIERI
DCM
16 de outubro de 2017- Aos golpes do oportunismo, do golpismo, da covardia, do sofismo e da falácia argumentativa, a maioria do STF derrubou a estátua da Justiça em praça pública, espatifou-a na frente da nação, rasgou a Constituição e, com ambas, estátua e Constituição, fez uma grande fogueira onde foram queimados os princípios da república, a igualdade perante a lei a punibilidade de políticos criminosos e a decência nacional. Cinco ministros, que não têm compromissos com a Constituição, mas com subserviência aos raposões corruptos do Senado, jogaram a gasolina. Carmen Lúcia acendeu o fogo e ainda jogou uma pá de cal sobre as cinzas, pintando o cinza o que já era cinza num país condenado a ser vítima de si mesmo por ser vítima de uma elite que não tem seriedade, que não tem responsabilidade e que não tem pudor.​
Carmen Lucia mostrou não ter condições de presidir um centro acadêmico de uma faculdade de direito. Para desgraça do Brasil, no entanto, preside aquilo que deveria ser a mais alta Corte Constitucional do país, cuja virtude primeira dos seus componentes deveria ser a coragem. A partir da semana passada, o STF, que já havia se curvado aos políticos da Câmara e do Senado no processo da derrubada da presidente Dilma, decidiu, em ato formal, tornar-se um poder subordinado, abrindo mão de ser a Corte que decide em última instância.
A decisão da maioria do STF fere a Constituição e não se trata de engano. Basta comparar os argumentos que os juízes usaram quando do afastamento de Eduardo Cunha e os que usaram na decisão do último dia 12. Fica claro que a maioria da Corte votou em função das conveniências políticas e não do espírito e da letra da Constituição. A OAB deveria analisar se estes cinco juízes, mais a Carmen Lucia, não cometeram crime de responsabilidade. Sob o disfarce do julgamento de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, o que decidiram foi o caso específico de Aécio Neves entregando ao Senado a prerrogativa de devolver-lhe o mandato. O mesmo Senado que não cumpriu a Constituição quando decidiu não investigar e não julgar Aécio.
O STF criou uma desordem constitucional. Para casos diferentes, mas com a mesma natureza jurídica, aplicou decisões ao sabor das conveniências: uma para Eduardo Cunha, outra para Delcídio do Amaral, uma terceira para Renan Calheiros e uma quarta para Aécio Neves. A sociedade não pode ter fé e respeito a um tribunal que age dessa forma.
Os magistrados deveriam dignificar o honroso cargo que receberam, alguns sem as competências e/ou as virtudes necessárias. Deveriam ser um exemplo para a sociedade e para os futuros juízes. Deveriam pensar em proporcionar biografias relevantes, pois o bom exemplo e a vida correta são os maiores bens que podemos deixar nesta vida. Mas quem não tem dignidade não pensa em biografia.
Um dos fundamentos adotados pela maioria do Supremo sustenta a tese de que somente os representantes podem decidir acerca de um mandato que emana da soberania popular. Para manter uma coerência lógica, as decisões que afetarem vereadores, deputados estaduais e governadores também precisariam de um aval da Casa legislativa correspondente sempre que uma decisão judicial afetar um mandato.
O STF se tornou um dos principais fomentadores da crise institucional. Note-se a absurda argumentação de Dias Tofoli: “O Supremo Tribunal Federal não pode atuar, portanto, como fomentador de tensões constitucionais, o que ao meu ver viria a ocorrer caso se suprimisse do poder Legislativo o legítimo controle político de restrições de natureza processual penal que interferem no livre exercício do mandato parlamentar”.
A argumentação é absurda porque parte de um pressuposto falso: o STF deve julgar segundo a Constituição e não segundo se causa ou não causa tensões constitucionais. Ademais, em nenhum país  democrático o Legislativo tem a prerrogativa de fazer o controle político de restrições de natureza processual penal. Mesmo no processo de impeachment de um presidente, o Senado se transforma em tribunal para julgar politicamente, cabendo ao STF julgar a matéria de natureza penal.
A violação da Constituição
Para que uma Constituição seja democrática e republicana precisa fundamentar-se em alguns pressupostos: nenhum poder é ilimitado, nem mesmo a própria Constituição; Estado de Direito significa poder limitado, valendo isto para os três ramos do poder; os três poderes estão submetidos a uma relação de controles mútuos, de pesos e contrapesos, não existindo um poder soberano sem controle a acima dos outros; definidas as funções específicas de cada poder, com ingerências parciais um no outro, cabe ao tribunal constitucional as decisões últimas em matéria penal e no controle da constitucionalidade.
Uma Corte ou um tribunal constitucional são supremos exatamente porque têm a prerrogativa das decisões finais, indicadas no último item acima. Se não for assim, a Constituição deixa de ser  republicana e democrática. Foi este atentado, foi este crime contra a Constituição, que a maioria do STF perpetrou. A Corte constitucional tem a faculdade de interpretar o direito em vigor, a Constituição, as leis do Legislativo, com uma autoridade que estabelece uma obrigação constitucional dos outros dois poderes.
A prerrogativa de interpretação de uma Corte constitucional, porém, não é aberta e infinita. Ela tem dois limites: 1) a própria Constituição; 2) os princípios fundantes da Constituição republicana e democrática que não podem ser ultrapassados pelo poder constituinte soberano, por uma Corte Constitucional ou pelo poder que tem a prerrogativa de emenda constitucional – no caso, o Congresso. A maioria do STF violou a Constituição ao permitir que a Câmara e o Senado adquiram funções judiciais e possam tomar decisões finais acerca de atos delituosos de deputados e senadores.
O Brasil vive hoje uma situação insuportável do ponto de vista político, institucional e moral. Do ponto de vista político, o sistema e as instituições estão sem legitimidade e desacreditados junto à sociedade. Do ponto de vista institucional, há um  golpe em andamento, um presidente ilegítimo, o Congresso desacreditado com dezenas de políticos denunciados e um STF que viola a Constituição e não faz aquilo que as suas prerrogativas determinam. Do ponto de vista moral, o Brasil é governando por um presidente denunciado duas vezes e por um governo criminoso, que destrói os fundamentos éticos, as condições de futuro do país e  afronta a dignidade das pessoas.
O STF precisa responder à sociedade como é possível que o país seja governando por um presidente e por um governo sobre os quais recaem, não acusações vagas, mas provas evidentes de que se trata de entes delinquenciais. Nenhum país do mundo, minimamente sério e democrático, teria um governo que é expressão de inominável indignidade. O STF precisa responder à sociedade como é possível que ministros delinquentes continuam ministros; como é possível que  deputados e senadores corruptos continuam em seus cargos.
Deputados e senadores só são invioláveis, civil e penalmente, pelas suas opiniões, palavras e votos, diz a Constituição. Não o são por atos criminosos. Quando cometem crimes, precisam ser punidos na mesma condição dos demais cidadãos. Se não for assim, isto é contra os fundamentos e os princípios da Constituição. Se em algum lugar a Constituição garante proteção a políticos criminosos, isto é contra os fundamentos Constituição e o STF precisa pronunciar-se e adotar providências. Se não é assim, a nossa Constituição não é nem democrática e nem republicana. É uma Constituição refém de covardes, de sofistas e de corruptos.
POR ALDO FORNAZIERI, professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo
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