João Pessoa (PB) – Sueli Silva, 56 anos, não cansa de cobrir de carinhos o filho Ricardo Santos Araújo, retirado de seus braços há 38 anos, na saída da maternidade, no Gama, Distrito Federal. Com muito chamego e cafuné, ela procura compensar o tempo que viveram afastados. O momento, agora, é de resgate das origens dele e de reforçar os laços entre mãe e filho. O reencontro ocorreu em João Pessoa, Paraíba, onde Ricardo vive, após uma exaustiva investigação comandada pelo delegado Murilo de Oliveira Freitas, da 14ª Delegacia de Polícia (Gama).
Sueli está há seis dias em João Pessoa. Já conheceu os três netos, uma menina e dois meninos, de 10, 9 e 7 anos. Nesta terça-feira (07/05/2019), os dois embarcam para Brasília, onde Ricardo irá conhecer os dois irmãos, uma jovem de 23 e um rapaz de 21. “O momento agora é de trabalhar um vínculo familiar. Ele precisa conhecer suas origens, ver o lugar onde nasceu, conhecer os irmãos, tios e primos. Foram 38 anos de anonimato”, diz Sueli.
Ela já programa uma grande festa de Dia das Mães, no próximo domingo (12/05/2019), reunindo toda a família, agora completa, em Arniqueiras, onde mora. “Vai ser o melhor Dia das Mães da minha vida”, afirma, emocionada.
Vida sofrida
Sueli teve uma vida sofrida. Ela e quatro irmãos foram abandonados pelo pai, após a morte da mãe, e levados para um orfanato em Corumbá de Goiás (GO). Lá, quando tinha 13 anos, foi estuprada pelo filho da administradora do orfanato. Engravidou e foi mandada para a casa de uma família em Brasília, onde teve uma filha, que morreu alguns anos depois, de choque anafilático.
Conheceu um militar e engravidou de Ricardo, a quem deu o nome de Luís Miguel. A dona do orfanato, no entanto, acreditava que o pai era seu filho e decidiu que Sueli não poderia ficar com o menino.
Ela, porém, se concentra agora em viver este momento de reencontro com o filho. E Ricardo segue para Brasília sem pressa de voltar para João Pessoa. Comprou só a passagem de ida. Os irmãos brasilienses de Ricardo aguardam com ansiedade o encontro. “Eles ficam me perguntando como ele é, dizem que parece muito comigo. Mandaram vídeos para ele. Estão ansiosos. E todo mundo quer marcar alguma coisa. A agenda está cheia, até o delegado quer fazer um churrasco”, conta Sueli.
Sempre juntos
Ricardo diz que a família de ambos cresceu muito agora. Ele tinha apenas uma irmã, também adotada por Rafael e Vilany Araújo. A mãe adotiva morreu há seis meses. O pai está vivo e continua vivendo em Arara, no interior da Paraíba, onde Ricardo foi criado. “Eu quero, assim que puder, ir a Arara para agradecer pessoalmente ao senhor Rafael pela excelente criação dada a meu filho, pela educação que ele teve e pelo caráter formado”, afirma Sueli.
Segundo Ricardo, os pais adotivos sempre pensaram que a mãe da criança havia colocado, espontaneamente, o filho para adoção. “Eu fui criado sabendo que era adotado. Sabia que minha mãe biológica morava em um orfanato e não tinha condições de me criar, mas só isso”, conta ele. Ele diz que a mãe adotiva, certa vez, chegou a perguntar se ele não gostaria de procurar a mãe biológica.
“Mas eu não sabia como fazer. Tive medo e deixei o tempo passar”, explica. “É como se tivesse uma cortina numa porta. Tem a passagem, mas você não consegue atravessar”, avalia.
Medo ele teve também quando recebeu a primeira ligação do delegado, falando de uma suposta mãe biológica. “Foi um baque. E não estendi a conversa. Fiquei três dias sem dormir e pensava: ‘E se não for?’. Ele ligou outra vez, alguns dias depois, e detalhou bastante a história, falou do inquérito policial, mas eu ainda tinha a pergunta ‘e se não for?’”.
Suspense e DNA
Mesmo assustado, concordou em fazer o DNA. A partir daí foi uma tortura que durou sete dias. “Fiquei sem dormir, só imaginando. Mas fiquei na minha, não contei nada a ninguém, só para minha namorada”, relata.
Quando recebeu a mensagem do delegado, no dia 24 de abril deste ano, confirmando que era filho de Sueli, Ricardo estava em uma área afastada de Campina Grande, cidade distante cerca de 133 quilômetros de João Pessoa. “Fiquei mais nervoso, emocionado, minha mão suava muito, eu chorava”, diz.
O delegado avisou que havia passado seu telefone para Sueli. E não demorou nem 30 segundos para receber uma mensagem da mãe, querendo autorização para ligar. Ele pediu alguns minutos, mas ela não se conteve e ligou imediatamente. O primeiro contato foi rápido, ele disse estar saindo de uma loja e que ligaria depois. Quando retornou a ligação, porém, a conversa fluiu. Ficaram mais de uma hora na videoconferência.
“Senti uma pureza muito forte nela. Isso tem em mim também. Mas na hora eu disse a ela que não sabia o que falar. Ela me disse que não precisava. Que só deixasse ela ver minha orelha, minhas unhas, minha careca. Ela só queria me olhar”, conta, sorrindo. No mesmo dia, ainda se falaram por duas horas. Desde então, têm se comunicado diariamente.
Ricardo está feliz com a família que acaba de conhecer e diz não ter mágoa de nada. Conta que teve uma infância feliz no interior, brincando muito na rua, soltando pipa, fazendo carrinho de lata e muitas outras brincadeiras pouco comuns atualmente nas grandes cidades. Fala com carinho dos pais adotivos, mas parece estar pronto para ter também bons momentos com seus novos familiares.
Planos
Sueli, por sua vez, mudou todos os seus planos de vida. Ela, que nos últimos meses estava morando em Recife, Pernambuco, por causa do trabalho na Clínica Hospitalar Novo Nascer, que atende pessoas com transtornos emocionais e dependência, voltou para Brasília. A intenção era ir viver com o marido, que é francês, na França, mas isso já não está mais nos planos.
“Ele está voltando nos próximos dias para o Brasil”, explica. Sem saber, ela estava muito perto do filho, já que Recife está a 121 quilômetros de João Pessoa. Sem falar que ela chegou a cogitar se estabelecer na capital paraibana para desenvolver os projetos da clínica na região. Agora, entretanto, seus planos são curtir os filhos e se organizar para receber os netos assim que for possível. “Agora, é só felicidade”, completa.
Investigação de seis anos
A história de Sueli foi revelada pelo Metrópoles. A aproximação só foi possível graças à investigação da Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF), que durou cerca de seis anos.
Essa história começou em 1972. Então com 9 anos, órfã de mãe e abandonada pelo pai, Sueli e os quatro irmãos (três meninas e um garoto) foram levados pelo avô a um orfanato em Corumbá de Goiás (GO), cidade a 125 quilômetros de Brasília.
Em razão de os envolvidos na história já terem morrido ou estarem em idade muito avançada, sem condições de se defenderem, o Metrópolesoptou por identificar apenas mãe e filho, além do delegado que investigou o caso.
Sueli conta que aos 13 anos teria sido estuprada pelo filho da administradora da instituição. A violência sexual ocorreu outras vezes. Ela tentou se matar ingerindo veneno para formiga. Pediu ajuda à mulher, que ignorou os abusos sofridos pela adolescente. Acabou grávida e enviada a Brasília para morar com um casal conhecido da dona do orfanato. Ficou no local até o nascimento da filha Juliana, registrada apenas sob o nome da mãe.
As duas permaneceram na capital. Sem ter a quem recorrer, Sueli disse que continuou a trabalhar para a dona do orfanato, que também seria proprietária de uma escola infantil no Guará. Mãe e filha continuaram a morar com o mesmo casal.
Em maio de 1980, Sueli conheceu um policial militar com que manteve um breve relacionamento. Na época, o homem estava de partida para o Canadá e não teria ficado sabendo que a namorada havia engravidado. “Foi tudo muito rápido. Tivemos um relacionamento de cerca de três meses. Não sabia mais como encontrá-lo, mas tinha certeza que queria ter e cuidar do meu filho”, disse Sueli.
De acordo com ela, a dona do orfanato não teria acreditado na história. Achava que a criança seria fruto de uma nova investida do filho dela. Por isso, teria ordenado ao casal que mantivesse Sueli trancada em casa até que o bebê nascesse. Em 9 de fevereiro de 1981, Luís Miguel veio ao mundo, no Hospital Regional do Gama (HRG).
Filho levado
Quando saiu da maternidade, conforme conta, teria sido recebida pelo casal com o qual morava e uma mulher que tinha um lenço amarrado na cabeça. Pediram que ela fosse ao orelhão e ligasse para a dona do orfanato. A conversa não foi nada amistosa: “Ela disse que eu devia entregar meu filho para adoção, já que não tinha condições de criá-lo. Caso contrário, ia mandar os meus irmãos para um abrigo de menores infratores”.
“Implorei, supliquei, mas ela não me deixava falar, bateu o telefone e, quando voltei em direção ao carro, em prantos, meu filho já não estava lá. A mulher que usava lenço no cabelo também desapareceu”, lembrou.
Fragilizada, ela permaneceu trabalhando e morando no mesmo local, ainda sob influência da dona do orfanato, por mais de 20 anos. Nesse período, Sueli se casou, teve outro filho, perdeu a filha mais velha após um choque anafilático e só conseguiu independência financeira em 2004, quando foi aprovada em um concurso público no Governo do Distrito Federal.