Hoje, já vivem nessas terras, que equivalem a duas vezes o tamanho do Guará, 30 mil moradores distribuídos por 54 condomínios. Na maioria das negociações, os lotes foram comprados entre as décadas de 1980 e 1990, das mãos de Tarcísio Márcio Alonso. Ele era o proprietário de parte dos direitos hereditários da Fazenda Paranoazinho.
Desde que adquiriram os terrenos, os compradores lutam pela regularização dos condomínios. Embora a área seja de propriedade privada, estava, até 2010, destinada à atividade rural, sem previsão de parcelamento urbano. Além do mais, a documentação em posse dos adquirentes era precária, uma vez que se discutiam na Justiça os direitos pelo espólio do primeiro dono da fazenda, José Cândido de Souza, morto em 1937.
Em 2019, o sonho de morar em um lugar juridicamente seguro parecia próximo para milhares de pessoas, em razão de avanços como a mudança de destinação das glebas, que passaram a contemplar instalação urbana. A esta altura, a questão do espólio também estava resolvida. Mas, contrariando todas as expectativas, os moradores do Grande Colorado descobriram, recentemente, que caíram numa grande armadilha: estão sendo obrigados a pagar de novo pelos lotes, segundo regras publicadas em edital no último dia 11 de junho. E o mais espantoso é que a operação tem aval do GDF. O governo, inclusive, participou diretamente de uma espécie de conciliação, além de disponibilizar linha de crédito do Banco de Brasília (BRB) para financiar em até 100% a dívida dos residentes da localidade.
Os ocupantes do espaço até contavam com o fato de que teriam de arcar com despesas referentes à documentação, como taxas cartoriais, de transferência e registro de escritura. Mas não podiam imaginar que seriam cobrados novamente pelos torrões já adquiridos. O dinheiro vai para a Urbanizadora Paranoazinho, cujos sócios participaram diretamente da venda dos quinhões no início da ocupação. O preço médio do metro quadrado previsto em edital é de R$ 120. Dependendo das dimensões e endereços, o preço dos lotes vai variar entre R$ 60 mil e R$ 120 mil. Somente com o pagamento desses valores, a Urbanizadora Paranoazinho deverá embolsar cerca de R$ 300 milhões.
O Metrópoles teve acesso a documentos inéditos que demonstram uma possível maracutaia no processo que pode lesar milhares de pessoas. A papelada revela que os moradores, em sua maioria, compraram e pagaram pela terra vendida por Tarcísio Márcio Alonso. Mostram, ainda, que ele revendeu os mesmos quinhões para a atual Urbanizadora Paranoazinho, uma sociedade anônima criada exclusivamente para gerir o bilionário negócio. Trocando em miúdos: o negociante vendeu as mesmas propriedades duas vezes, lucrou em dobro. A pendenga se dá porque, atualmente, a Paranoazinho não reconhece os documentos apresentados pelos moradores do Grande Colorado. Argumentam que eles teriam “comprado mal” e feito um negócio precário e irregular. Só que os registros obtidos pelo Metrópoles trazem à luz um fato muito relevante: a mesma documentação agora desprezada pela Urbanizadora Paranoazinho foi validada na transação de sete anos atrás, que tornou a empresa legítima dona das terras.
Tarcísio, que é peça-chave nessa história, negociou durante anos, uma por uma, as cessões de direito à posse das terras com os herdeiros do José Cândido, o primeiro dono da fazenda. Depois, o mesmo Tarcísio Márcio Alonso viria a renegociar com a Paranoazinho a papelada, numa operação de R$ 60 milhões. A transação está detalhada em escritura de compra e venda firmada entre Tarcísio e a sociedade anônima, registrada em 9 de abril de 2013, no 15º Cartório de Notas de São Paulo.
Em determinado momento das transações referentes ao Grande Colorado, surgem dois novos personagens importantes: os empresários José Celso Gontijo, proprietário da construtora JC Gontijo, e o ex-bilionário Rafael Birmann. Ele ficou conhecido por fazer grandes aportes em negócios extravagantes, como a construção do primeiro hotel seis estrelas do Brasil, o Palácio Tangará.
Tarcísio chegou a ser condenado e preso por grilagem de terras no Distrito Federal e em São Paulo. Mesmo sendo observado de perto por autoridades policiais, conseguiu reunir dois empresários com capital para dar início à exploração da área situada em Sobradinho. Da junção dos três, nasce a Urbanizadora Paranoazinho.
Essa administradora sempre foi vista com desconfiança pelos moradores, muitos dos quais nem sequer sabiam quem lhes batia à porta para cobrar a fatura das glebas. Documentos obtidos pela reportagem não deixam dúvidas sobre o vínculo do trio. Em 2012, sob o comando de JC Gontijo, surge a empresa Desenvolve Participações, que se tornou acionista da Urbanizadora Paranoazinho. Essa empresa, ligada a Gontijo, se declara devedora confessa da dívida da Urbanizadora com Tarcísio. O Instrumento Particular de Confissão de Dívida é datado de outubro de 2013 e, até agora, era mantido sob sigilo.
Contrato de Confissão de Dívida:
Nesse mesmo documento, estabelece-se como será o pagamento pela venda das terras reclamadas por Tarcísio. Parte dos dividendos está condicionada à exploração das glebas onde será erguida a Cidade Urbitá, projeto de urbanização já aprovado pelo GDF em uma área de 922 hectares nos arredores dos condomínios já instalados no Grande Colorado. No acordo, a empresa administrada por José Celso Gontijo também se compromete a orientar os conselheiros por ela indicados para o coletivo de gestão da Urbanizadora Paranoazinho a “não aprovar sem anuência prévia e por escrito de Tarcísio Márcio Alonso alteração da referida deliberação tomada pelos membros do Conselho de Administração, sob pena de responder pelos prejuízos que causar a Tarcísio”. O texto não deixa dúvida sobre a ingerência do grileiro na Urbanizadora Paranoazinho.
Veja:
REPRODUÇÃO
A participação direta de Tarcísio Márcio Alonso na Urbanizadora Paranoazinho também fica patente em uma troca de e-mails à qual o Metrópoles teve acesso. Na conversa, o nome de José Celso Gontijo é citado.
Em 2012, Tarcísio envia correio eletrônico autorizando um corretor a negociar sua participação societária na Urbanizadora Paranoazinho. Ele informa ter 29,7% dos papéis. No mesmo texto, compromete-se a dar preferência de compra aos também sócios da empresa José Celso Gontijo e Rafael Birmann. O diálogo não evidencia se o negócio fora fechado, mas corrobora a relação de consórcio entre os citados.
É esse trio que tentou se proteger por trás da figura da Urbanizadora Paranoazinho, que tem investido em receber dos moradores pelas terras um dia já compradas. Com apoio de peso: recentemente, o GDF se prontificou a auxiliar na suposta resolução de um processo que era discutido entre duas entidades particulares (moradores x Urbanizadora Paranoazinho). A entrada do Palácio do Buriti desequilibrou a balança em favor de quem ostenta poder econômico.
O oficial da reserva do Exército Brasileiro Silvério Amorim, 72 anos, recorda-se do dia em que adquiriu o terreno onde vive com a família há 20 anos. “Era setembro de 1993: por indicação de um cunhado, fui à empresa do Tarcísio e negociamos. Ele só aceitava o pagamento em dinheiro. O preço cobrado: 250 mil cruzeiros. Fui ao banco, tinha 253 mil na conta. Saquei o que precisava e levei a quantia em um envelope grande de papel pardo. Entreguei nas mãos dele”, conta.
Amorim guarda toda a documentação.
Fui chamado de burro pelo governador, e é assim que eu me sinto. Fomos todos enganados. O edital é fajuto, só atende aos interesses da empresa. Nós, moradores, que compramos de boa-fé e lutamos por mais de 20 anos pelos nossos direitos, ficamos com todo o prejuízo
SILVÉRIO AMORIM, 72 ANOS
Amorim faz referência ao dia em que próprio Ibaneis Rocha (MDB)intermediou reunião de síndicos dos condomínios do Grande Colorado e representantes da Urbanizadora Paranoazinho. Na época, foi formalizada proposta para que os residentes pagassem, em média, R$ 120 por metro quadrado. Os moradores confrontaram os termos postos à mesa. Ibaneis reagiu com energia, indispondo-se com o grupo. No final das contas, prevaleceu a oferta da empresa privada.
Ao longo das últimas semanas, a reportagem ouviu dezenas de moradores que contam uma história muito parecida à de Silvério Amorim. Todos alegam ter pago pelas áreas, apresentam os documentos e denunciam estarem sendo coagidos a quitar os lotes. Nos últimos anos, centenas de ações referentes às terras do Grande Colorado tramitam na Justiça. A tendência é que as normas da regularização recém-lançadas também sejam alvo de novos questionamentos judiciais.
A indefinição sobre o direito à propriedade inicia-se muito antes da construção de Brasília. Em 1937, registra-se a morte de José Cândido de Souza, dono de uma fazenda de 15 mil hectares até então no ermo Cerrado goiano. A propriedade, batizada de Paranoazinho, passa a integrar o espólio do empresário paulista, que teve 11 filhos e dezenas de netos. O inventário chegou a ter 60 beneficiários.
Confira o acordo dos herdeiros de José Cândido:
Enquanto a complicada descendência de José Cândido era definida nos cartórios e tribunais de São Paulo, a nova capital do país foi erguida ao lado da antiga propriedade rural. Outro a vislumbrar a possibilidade de ganhar dinheiro com o local foi justamente Tarcísio Márcio Alonso, que já havia sido preso em 2001 por grilagem na região onde se situa a Fazenda Paranoazinho.
O esquema de venda de lotes na área correu frouxo até Tarcísio ser denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF), em 1998. O grileiro foi condenado a 3 anos de reclusão em regime semiaberto e ao pagamento de multa de 1,8 mil salários mínimos por ter iniciado, sem autorização, a construção de um dos condomínio no Grande Colorado: o Jardim América. A Justiça também entendeu que Tarcísio Márcio Alonso escondeu dos compradores a situação irregular do espaço.
Após a condenação, Tarcísio deixou a capital do país e mudou-se para São Paulo, onde também é investigado por venda irregular de terras. Mesmo longe, ele não deixou de lado os negócios em Brasília. A empresa Companhia de Negócios teria mapeado a área e identificou três oportunidades de negócio que poderiam gerar R$ 12 bilhões de lucro. Eram elas: a regularização dos condomínios já instalados, os valores a serem recebidos pela desapropriação de terrenos feita pelo governo na área – rodovias e um terreno utilizado pela Companhia de Abastecimento de Água do Distrito Federal (Caesb) –, e a chamada Área da Cobra (espaços vazios em que hoje está prevista a construção da Cidade Urbitá).
Confira os mapas: