O presidente da República, Jair Bolsonaro, causou espanto, foi fonte de chacota, indignação e reações exageradas quando, na reta final de um discurso, referiu-se assim à defesa da Amazônia: “quando acabar a saliva, tem que ter pólvora”. O presidente disse a frase em referência a uma das propostas de campanha do democrata Joe Biden, que ameaçou aplicar sanções ao Brasil caso o país não pare de destruir a floresta tropical.
Por conta de sua formação militar, Bolsonaro deve ter se lembrado de um conceito que aprendeu nos anos de academia: “a guerra é a continuação da política por outros meios”. A definição foi cunhada pelo general prussiano Carl Von Clausewitz, que escreveu o livro Da Guerra (1832), uma das obras basilares das Ciências Militares e que faz parte da formação militar. Segundo Clausewitz, portanto, a guerra não é a negação da política, mas parte dela.
E depois da fala, veio a espuma que segue tudo o que presidente diz, esteja ele errado ou não.
Enquanto no Brasil alguns forçam a mão para dizer que “declaramos guerra” aos Estados Unidos, um conflito de verdade está sendo arquitetado bem nas franjas do país e quase ninguém tem prestado atenção. Não se trata necessariamente de uma guerra convencional, aquela da pólvora. Nos últimos dias, o chanceler iraniano Yavad Zarif passou por Cuba, Venezuela e Bolívia, onde prestigiou a posse do socialista Luis Arce Catacora, eleito presidente no mês passado. As escalas de Zarif, que antecederam o desembarque em La Paz, não são cortesias casuais.
Zarif é o mensageiro do regime dos aiatolás que tem se esforçado para exportar o caos do Oriente Médio para o continente americano. O Irã é um dos principais atores extrarregionais da crise venezuelana, dando suporte aos chavistas na evasão de sanções petroleiras e na lavagem de dinheiro – seja ele proveniente de atividades formais, seja ele de origem ilícita.
Como um Estado criminalizado, a Venezuela de Maduro não tem seus alicerces erguidos em bases formais da economia, mas no crime. Tráfico de drogas, mineração ilegal e lavagem de dinheiro são as fontes do regime.
Ao longo deste ano, Teerã enviou navios-tanque repletos de gasolina para a Venezuela, ignorando as sanções e desafiando embarcações militares americanas posicionadas no Caribe para combater o tráfico de cocaína que usa a Venezuela como hub, antes de chegar ao México e depois nos Estados Unidos.
Teerã tem feito questão de que o mundo saiba de voos misteriosos que conectam os dois países. As diversas teorias passam pelo envio de ouro venezuelano para o Irã ou até mesmo que os aiatolás estariam enviando insumos para que a Venezuela possa montar mísseis, que serviriam para ameaçar os vizinhos e talvez os Estados Unidos.
Um coquetel de verdades e de ficções que o Irã combina, com muita precisão, para ocultar o fundamental. Desde Hugo Chávez, o Irã nutre um interesse especial pela Venezuela e pelos demais países sob sua influência. Em 2007, o então presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad esteve em Caracas para recrutar Chávez para execução de uma conspiração nuclear.
Ahmadinejad pediu ajuda a Chávez para comprar os segredos nucleares da Argentina e colocar em funcionamento uma usina paralisada no Irã, que permitiria gerar plutônio, insumo para sonhada arma nuclear dos aiatolás.
Em 2010, quando o Brasil se meteu na patetice de querer costurar um acordo nuclear com o Irã, os inspetores internacionais afirmavam que Teerã tinha em seu poder 1,2 mil quilos de urânio pobremente enriquecido. Em 2015, quando os EUA firmaram um documento com o regime teocrático, os estoques de material radioativo eram de 10 toneladas.
O milagre da multiplicação do urânio se deu com a chegada de Zarif ao comando do Ministro das Relações Exteriores do Irã, em 2013. Vindo da representação iraniana na ONU, ele já se destacava pelos dribles que dava nos inspetores internacionais durante os períodos mais intensos de tentativa de frear as ambições nucleares iranianas.
Há indícios suficientes de que Venezuela e Bolívia podem ter ajudado os iranianos a obter, de forma clandestina esses insumos.
Foi Zarif que arrancou de Cristina Kirchner um acordo que enterraria as investigações do atentado contra a sede da Associação Mutual Israelita de Buenos Aires (Amia), ocorrido em 1994, e também foi sob sua gestão que o Irã registrou um consulado de fachada em São Paulo.
O consulado fake jamais foi comunicado ao Itamaraty e no local funcionava uma série de empresas de pessoas ligadas ao governo iraniano como agência de viagem e exportadoras. Uma possível fachada para o trânsito de pessoas, valores e mercadorias.
O deslocamento de Zarif em meio a uma pandemia para a posse de Luis Arce na Bolívia não deveria ser tratado como algo trivial ou de reconhecimento de prestígio do presidente andino. O chanceler iraniano veio intensificar as tensões na região.
No final de outubro, o ex-presidente Evo Morales – que vivia no exílio na Argentina – deixou o país para ir à Venezuela em um voo que fez questão que todos soubessem da existência, mas que manteve cercado de mistérios sobre os objetivos.
Pouco depois que o avião que transportou Morales aterrissou no Aeroporto de Maequetía, nos arredores de Caracas, uma outra aeronave, proveniente de Teerã, também chegou no mesmo terminal, de uso exclusivo das autoridades venezuelanas. Evo Morales, auxiliares de Maduro e a delegação iraniana se reuniram.
Zarif está desenhando um plano que ainda não está claro, mas, embora tenha cara de diplomacia, tem cheiro de pólvora – não necessariamente a contém, porém. Sob esse aspecto, ele é um general em campo de batalha. E para entender o tipo de guerra em que ele atua, é preciso esquecer por completo o conceito de que os conflitos se dão exclusivamente sob fogo cruzado.
Basta lembrar que Yang Wanming, o atual embaixador da China no Brasil, quando passou pela Argentina, conseguiu pela diplomacia fincar uma base militar chinesa na Patagônia, disfarçando-a de estação científica. Instalação esta que não permite o acesso de inspetores argentinos sem que tenha sido usado sequer um estalinho de pólvora. A soberania de uma porção do território foi perdida sem o trauma das Malvinas.
As guerras mudaram de forma. Ou a gente aprende logo, ou vai ser tarde demais.