Há pouco tempo, os generais Abdel Fatah al-Burhan e Mohamed Hamdan Daglo eram tidos como amigos. Mais que isso, aliados. Juntos, estiveram à frente do golpe que pôs fim à transição do Sudão para um governo civil, em 2021. Ex-comandante do Exército sob o ditador deposto Omar al-Bashir, Al Burhan pensava contar com a lealdade de seu vice, também conhecido como "Hemedti", chefe das Forças de Apoio Rápido (FAR). Nos últimos meses, tudo mudou e, desde sábado, eles lideram combates explosivos, que eclodiram na capital, Cartum, e rapidamente se espalharam pelo país, numa disputa pelo poder.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), em três dias, mais de 180 pessoas morreram e 1,8 mil ficaram feridas no conflito. "A situação é muito instável. É difícil afirmar para onde pende o equilíbrio", disse o chefe da missão da ONU no país, Volker Perthes, após uma intervenção a portas fechadas no Conselho de Segurança.
Os dois lados se acusam mutuamente da violência, que aumenta à medida que as forças rivais rejeitam pedidos de cessar-fogo feitos pela comunidade internacional. Estados Unidos, Reino Unido, União Africana e países árabes tentaram evitar os embates. A escalada mina cada vez mais a expectativa de um processo de transição democrática.
O confronto se dá quatro anos depois da mobilização que derrubou Al Bashir, que governou o Sudão por três décadas. A partir dali, iniciou-se a transição, interrompida pelo golpe de outubro de 2021. Desde então, Al Burhan, 62 anos, é o dirigente de fato do terceiro maior país da África em extensão territorial. Líder das FAR, o poderoso grupo paramilitar que se formou em Darfur, Daglo, 48, tornou-se o número 2.
Sem energia e água
Ontem, no terceiro dia de embates, explosões voltaram a abalar Cartum, imersa ao cheiro de pólvora. Pelo menos dois hospitais da capital foram evacuados "enquanto foguetes e balas crivavam suas paredes", disseram os médicos, que alegam ter ficado sem bolsas de sangue e material para cuidar dos feridos.
A população está entrincheirada em casas, a maioria sem água encanada ou eletricidade, tremendo a cada novo ataque aéreo. Apenas homens fardados e veículos militares circulam pelas ruas. As poucas mercearias abertas avisaram que, se os caminhões não chegarem, logo ficarão sem estoque.
O secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, pediu aos dois generais que "parem imediatamente com as hostilidades", já que podem ser "devastadoras para o país e toda a região". A ONU, que propôs uma trégua humanitária de algumas horas no domingo, declarou-se "extremamente decepcionada" com o desrespeito dos beligerantes e denunciou ontem a "intensificação dos combates".
Briga de versões
Segundo analistas, é impossível precisar o avanço de cada um dos lados. As FAR alegam terem tomado o aeroporto e entrado no palácio presidencial, o que o Exército nega. Por sua vez, os militares afirmam ter em mãos o quartel-general do Estado-Maior, um dos principais complexos de poder em Cartum. A televisão estatal começou a transmitir imagens e declarações do Exército, que afirma ter recuperado terreno em muitos lugares.
Dois gregos ficaram feridos em Cartum e cerca de 15 pessoas estão escondidas na igreja ortodoxa da cidade, impossibilitadas de sair por causa dos combates, disse o arcebispo metropolitano de Núbia e de todo o Sudão, monsenhor Savvas, que está dentro do templo.
O Programa Mundial de Alimentos (PMA) suspendeu o auxílio no domingo após a morte de três membros de sua equipe nos combates da província de Darfur (oeste). Estima-se que mais de um terço dos 45 milhões de sudaneses precisam de ajuda humanitária.
"Essa é a primeira vez na história do Sudão desde sua independência (em 1956) que se observa tal nível de violência no centro de Cartum", declarou à agência France Presse (AFP) Kholood Khair, fundadora do centro de pesquisas Confluence Advisory, na capital do país.
"Cavalo de Troia"
O general Al Burhan é acusado por seus adversários de ser um cavalo de Troia dos islâmicos e chefes da época de Al Bashir. Após a queda do ditador, ele dirigiu o Conselho Soberano junto com partidos políticos civis para levar o país rumo à democracia. Antes do golpe, havia prendido quase todos os ministros e autoridades civis. Seus comandados o descrevem como "um comandante que sabe liderar suas tropas".
Pai de três filhos, Al Burhan coordenou o envio de tropas sudanesas para o Iêmen, segundo a imprensa local. Também impulsionou a normalização das relações com Israel e mantém bons vínculos com o Egito, país onde frequentou a academia militar, além da Jordânia e do próprio Sudão.
No Golfo, porém, analistas apontam que seu agora inimigo conseguiu se impor mais. Nascido em 1975 em uma tribo árabe na fronteira com o Chade, Daglo conseguiu criar aliados nos Emirados Árabes Unidos e na Arábia Saudita depois de enviar seus homens para lutar na Líbia, ou na coalizão militar liderada por Riade no Iêmen.
Atualmente, ele conta com vantagens. Suas forças, criadas em 2013 e integradas ao Exército regular, controlam inúmeras minas de ouro, lembra o European Council on Foreign Relations. E, segundo os EUA, têm com o apoio dos paramilitares russos do grupo Wagner.
Ao longo dos anos, Hemedti se estabeleceu como um jogador-chave no país. De chefe de uma pequena milícia, no início dos anos 2000, estabeleceu-se no topo do poder, estendendo sua influência de Darfur até Cartum.
Durante o golpe de 2021, Daglo ofereceu sua ajuda a Al Burhan, mas hoje diz que mudou e se alinha com os civis para denunciar o Exército comandado pelo rival.