07/07/2023 às 09h18min - Atualizada em 07/07/2023 às 09h18min

Presidente da Nicarágua busca o controle absoluto da polícia

Assembleia Nacional, de maioria governista, aprova duas reformas que transformam a força de segurança em corpo armado e político a serviço de Daniel Ortega. Especialistas e opositores temem que medidas intensifiquem a repressão

​Polícia Nacional reprime protesto da oposição, em foto de arquivo: especialistas veem escalada autoritária com reformas - (crédito: Maynor Valenzuela/AFP)


Há 16 anos no comando da Nicarágua, o presidente Daniel Ortega deu um passo a mais para reprimir a dissidência, sufocar focos de insatisfação dentro da Polícia Nacional e reforçar o próprio poder. Controlada pelo partido governista Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN), a Assembleia Nacional aprovou reformas da Constituição Política e da Lei Orgânica da Polícia. De acordo com especialistas e opositores, as duas medidas, que tramitaram em caráter de urgência, legalizam o controle absoluto de Ortega sobre a Polícia Nacional e eliminam o caráter profissional, civil, apolítico e aparidário da instituição.

O novo texto do artigo 97 da Constituição Política estabelece que "a Polícia Nacional é um corpo armado, subordinado ao presidente da República, encarregado de proteger a vida dos habitantes do país; preservar a ordem social e interna; garantir a segurança das pessoas e das instituições; exercer a prevenção, a perseguição e a investigação do delito; e prestar auxílio necessário às autoridades civis e judiciais para o cumprimento do desempenho de sua funções". Ele começará a vigorar na próxima Legislatura, em 2024, após ratificação. Por sua vez, a nova Lei Orgânica da Polícia determina que aqueles policiais que descumprirem seus deveres ou que desertarem estarão sujeitos a pena de até três anos de prisão.

Diretora do Centro de Estudos Transdisciplinares da América Central, a nicaraguense Elvira Cuadra disse que as reformas aprovadas mudam a natureza da Polícia Nacional. "Elas transformam uma instituição nacional em aparato de repressão e de controle. Também aumentam as ameaças e pressões sobre os policiais para que não desertem", afirmou ao Correio. Na análise de Cuadra, as mudanças extinguem o caráter civil da Polícia Nacional, que passa a ser apenas um corpo armado. "São um passo adiante na radicalização autoritária da Nicarágua", alertou.

Por sua vez, Enrique Saenz, analista político nicaraguense exilado na Costa Rica e ex-deputado da Assembleia Nacional, classificou as duas reformas como "palhaçada". "Com lei ou sem lei, com reformas ou sem reformas, a Polícia Nacional encontra-se sob controle absoluto de Ortega há quase uma década", ironizou, por telefone. "Ao longo dos anos, Ortega mostrou que não respeita a Constituição, as leis ou os compromissos internacionais. A Polícia Nacional se converteu em um instrumento repressivo. Isso não é mais do que uma cortina de fumo do regime", acrescentou.

 Máfia
Saenz adverte que Ortega busca levar a repressão para dentro da própria Polícia Nacional e se antecipar a repercussões, no interior da instituição, das recentes deserções de oficiais que fugiram para os EUA. "A reforma da Constituição é pura pantomima", criticou. Ele acusou Ortega de encabeçar uma máfia que se apoderou da totalidade das instituições do Estado, incluindo os corpos repressivos, embolsou uma"formidável fortuna" e mergulhou na impunidade. "Não existe, por aqui, um projeto político, de mudança, de esquerda ou progressista. O que ele tem implantado é um Estado mafioso. Com o dinheiro, essa máfia corrompe a cúpula do Exército, da Polícia Nacional e do Poder Judiciário. Ortega não é uma ditadura, mas uma máfia que controla a totalidade do Estado e deseja manter-se no poder a ferro e fogo."

Félix Maradiaga, principal líder da oposição na Nicarágua, explicou ao Correio que a reforma dentro da Polícia Nacional tem sido discutida dentro dos círculos sandinistas desde abril. "Ortega vem fazendo uma série de mudanças que implicam na remoção de oficiais da Polícia Nacional sem nenhuma explicação e na reincorporação de antigos oficiais, que estavam aposentados. Membros do Partido Sandinista, que tinham uma posição política de liderança, foram excluídos, recentemente, do círculo íntimo de Ortega. Isso quer dizer que, dentro da Polícia Nacional, existe uma corrente que não está muito contente com Ortega; inclusive, em janeiro passado, o ex-comissário Adolfo Marenco, encarregado da inteligência policial, foi investigado em um processo de auditoria interna", afirmou.

Para Maradiaga, Ortega também busca acelerar um novo modelo político policial, o qual desmonta a reforma da polícia dos anos democráticos da Nicarágua. "A Polícia Nacional nasceu em 1979 com o nome de Polícia Sandinista. Em sua origem, ela se sujeitava ao partido político e ao governo da Frente Sandinista. Entre 1990 e 1996, houve várias transformações. A polícia mudou de nome e passou a ser subordinada a um ministro civil. Isso permitiu à Assembleia Nacional (Parlamento) ter um maior controle para fazer auditorias na instituição, que era menos militar e menos política", observou o opositor. Ele acredita que Ortega busca retomar o velho modelo da Polícia Sandinista. "Nesse modelo, a polícia é mais política e tem vínculos mais próximos com os sandinistas, além de não se subordinar a autoridades civis", disse Maradiaga.

Sanções severas
Ainda de acordo com ele, Ortega ordenou a aplicação de sanções mais severas à insubordinação policial. "Qualquer chefe policial que fizer qualquer crítica ao governo de Ortega poderá ser condenado a vários anos de prisão", afirmou Maradiaga. A reforma policial coincide com várias deserções ocorridas, recentemente, entre os oficiais de baixas patentes. "Alguns oficiais da polícia renunciaram e chegaram aos Estados Unidos nos últimos dias. Também é importante lembrar que, em 9 de fevereiro passado, Ortega libertou 222 presos políticos, os deportou para os EUA e retirou-lhes a nacionalidade. Havia dois policiais nesta leva", lembrou o nicaraguense, que figura nas pesquisas de opinião como a principal liderança da oposição.

O medo impede muitos opositores de falar. "Aqueles de nós, que permanecemos na Nicarágua, não podemos nos pronunciar sobre nenhum tema político que diga respeito ao governo. Somos uma oposição silenciada. Espero que me compreenda e, por favor, não cite meu nome", afirmou um deles, ao rejeitar um pedido de entrevista do Correio. Ele prefere não especular em torno de uma suposta "grande insubordinação" dentro da Polícia Nacional. "O que temos são pequenas mostras de insatisfação, porém, muito preocupantes para Daniel Ortega", disse.


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