17/07/2023 às 05h58min - Atualizada em 17/07/2023 às 05h58min

Escolas cívico-militares: entenda por que o Ministério da Educação decidiu acabar com o programa

Nota técnica que embasou o fim do programa defende que ele desvia a finalidade das Forças Armadase e compromete recursos que poderiam ser mobilizados em frentes prioritárias

​Escolas cívico-militares: governo Lula avaliou que o investimento robusto foi um desvio de finalidade (Rovena Rosa/Agência Brasil)

A nota técnica do Ministério da Educação que embasou o fim do Programa Nacional das Escolas Cívico-Militares (Pecim) avaliou que o programa desvia a finalidade das Forças Armadas, comprometeu recursos que poderiam ser mobilizados em outra prioridade e questionou a capacidade de o modelo solucionar problemas do ensino público.

Em um dos trechos mais duros, o documento chega a afirmar que os investimentos para manter militares reformados nas escolas públicas em atividades de assessoria e suporte “parecem debochar da escassez de recursos que as redes de ensino conseguem mobilizar para o pagamento de seu próprio pessoal”.
 
O documento, assinado pelo secretário de Educação Básica substituto Alexsandro do Nascimento Santos, ressaltou que oficiais superiores, como os coronéis, recebem gratificações que passam de R$ 9 mil.
 
O governo Bolsonaro gastou, entre 2020 e 2022, quase R$ 100 milhões em escolas cívico-militares. Em 2023, a administração do presidente Lula zerou os empenhos.

No seu auge, com cerca de 200 escolas mantidas em parceria do MEC com estados ou municípios, o programa atendia apenas 0,1% das escolas públicas. Mesmo assim, em 2021 e 2022, o programa ficou entre as 15 maiores verbas discricionárias, em que o ministro tem poder de decisão de onde gastar, da educação básica.
 
"O programa foi um desvio de foco, tempo e recursos públicos, com tanta política importante a ser priorizada. É um absurdo o que foi dedicado a esse programa", criticou o diretor de Políticas Públicas do Todos Pela Educação, Gabriel Corrêa.

Criado em 2019, o programa defendia que os colégios do Exército, das Polícias Militares e dos Bombeiros eram modelos que podiam ser replicados e resolveriam os problemas das escolas públicas de ensino fundamental e médio.
 
Santos argumentou na nota técnica que essa ideia “causa espanto”, já que, segundo ele, essas unidades possuem “finalidade, funcionamento e estrutura absolutamente diferente”.

“A ideia de que a vulnerabilidade social nos territórios em que funcionam nossas escolas públicas possa ser resolvida a partir de dispositivos, modelos ou estruturas de ação próprias dos colégios militares também parece ecoar uma história social brasileira que alimenta uma profunda aporofobia, classificando os pobres (e a pobreza) como um problema relacionado à criminalidade, à falta de disciplina, à sua preguiça ou à sua falta de patriotismo e civismo”, escreveu o autor.
 
Ainda de acordo com a nota técnica, os colégios militares, em sua regulação, não possuem a finalidade de atender a todos. “Assume-se que o modelo ali definido é baseado na ‘seleção pelo mérito’”, diz o documento. A escola pública, contrapôs a nota, é universal por “definição normativa e por orientação ética”.
 
Além disso, o documento aponta que “há um equívoco inaugural no modelo da contratação” dos militares. A forma utilizada era por prestação de tarefa por tempo certo que, segundo a lei federal que o regulamenta, é“uma medida de gestão de pessoal militar que tem por fim permitir a execução de atividades de natureza militar por militares inativos possuidores de larga experiência profissional e reconhecida competência técnico-administrativa”.

De acordo com o autor, “não há que se falar em execução de atividades de natureza militar no âmbito das escolas de educação básica regulares”. Ele argumenta que as instituições educacionais possuem outra natureza e as atividades ali desenvolvidas em nada se confundem com atividades de natureza militar.

Veja os principais trechos da justificativa

Aporofobia
Na Exposição de Motivos apresentada quando da propositura do Decreto, é possível ler o seguinte: ‘A motivação para a institucionalização do Programa decorre da necessidade de adaptação das escolas regulares de Ensino Fundamental e Médio, as quais se encontram em situação de vulnerabilidade social, em Escolas Civico-Militares, com ênfase na gestão de excelência nas áreas educacional, didático-pedagógica e administrativa, baseadas nos Colégios Militares do Exército, das Polícias Militares e dos Corpos de Bombeiros Militares’.
 
Causa espanto que a visão instaurada na propositura interprete que os problemas graves e complexos de vulnerabilidade social que emergem nas regiões mais pobres do país e que impactam a estrutura e o funcionamento da escola pública possam ser resolvidos ou tratados a partir de um “modelo de excelência de gestão” desenhado para colégios de natureza militar, com finalidade, funcionamento, estrutura e lugar institucional absolutamente diferente daqueles que organizam e movimentam os sistemas municipais e estaduais de educação. É como se julgássemos que a vulnerabilidade social dos territórios é um tema de política militar e não de política social e que o encaminhamento de suas soluções passa pelo controle, hierarquia, disciplina e ordem que alicerçam a institucionalização das Forças Armadas no Brasil.
 
A ideia de que a vulnerabilidade social nos territórios em que funcionam nossas escolas públicas possa ser resolvida a partir de dispositivos, modelos ou estruturas de ação próprias dos Colégios Militares também parece ecoar uma história social brasileira que alimenta uma profunda aporofobia, classificando os pobres (e a pobreza) como um problema relacionado à criminalidade, à falta de disciplina (dos pobres), à sua preguiça ou à sua falta de patriotismo e civismo. Tal campo discursivo opta por ignorar que a pobreza e a vulnerabilidade social são consequências de uma história de sustentação de desigualdades inaceitáveis e, longe de ser ‘culpa’ dos pobres e vulnerabilizados, é um fardo que nossa sociedade insiste em lançar sobre seus ombros.
 
Desvio de Finalidade
Os colégios militares, que têm sua regulação prevista na Lei 9.786/1999 não possuem a finalidade institucional de atender a todos os cidadãos e nem assumem o compromisso de acolher qualquer pessoa que busque participar de seu corpo discente. Ao contrário, no capítulo II do referido diploma legal, ao declarar os princípios que organizam o ensino nos colégios militares, assume-se que o modelo ali definido é baseado na “seleção pelo mérito”.
 
A escola pública regular é universal por definição normativa e por orientação ética. Não existe qualquer possibilidade jurídica de a escola pública organizar-se por um modelo de gestão que pressupõe, por exemplo, que um princípio organizador da escola seja a “seleção pelo mérito” ou a expectativa de que os estudantes desenvolvam um “condicionamento diferenciado dos reflexos e atitudes funcionais”. A excelência de gestão dos colégios militares serve às finalidades e características da estrutura e funcionamento dos colégios militares e, ao ser “transferido” para as escolas públicas, como um padrão a ser atingido, produz distorções gravíssimas que afetam toda a dinâmica escolar.
 
Investimentos robustos
Os investimentos robustos para manter militares reformados nas escolas públicas de ensino fundamental e médio em atividades de assessoria e suporte parecem debochar da escassez de recursos que as redes de ensino conseguem mobilizar para o pagamento de seu próprio pessoal. Se, no caso de um oficial de graduação superior, a remuneração média mensal empenhada a título de gratificação para exercer atividades orbita na casa dos R$ 8 mil, pouquíssimos diretores das escolas em que eles atuam alcançam isso como salário.
 
Assim sendo, não é surpreendente que, quando o poder público oferece a promessa de investimentos robustos de infraestrutura e de uma gestão com a força de imposição que o signo das forças militares mobiliza à comunidades escolares empobrecidas e que contam com escolas nas quais a infraestrutura física é precária e o sistema de alocação dos professores não garante uma estabilidade e regularidade do corpo docente, o resultado seja um grau razoável de aceitação e engajamento com o modelo preconizado pelas escolas cívico-militares estaduais ou vinculadas ao Pecim.
 
Conclusão
Nossa análise preliminar, salvo melhor juízo, conclui que as características do Programa e sua execução até agora indicam que sua manutenção não é prioritária e que os objetivos definidos para sua execução devem ser perseguidos mobilizando outras estratégias de política educacional.
 
Desaconselhamos que o Programa seja mantido por compreendermos que:
a) há problemas de coesão/coerência normativa entre sua estrutura e os alicerces normativos do sistema educacional brasileiro; b) o programa induz o desvio de finalidade das atividades das forças armadas, invocando sua atuação em uma seara que não é sua expertise e não é condizente com seu lugar institucional no ordenamento jurídico brasileiro; c) a execução orçamentária dos recursos de assistência financeira destinados às escolas do Programa ao longo dos anos de 2020, 2021 e 2021 foi irrisória, comprometendo investimentos que poderiam ser mobilizados em outras frentes prioritárias do Ministério da Educação e, salvo melhor juízo, indicando ineficiência no processo de implementação; d) a justificativa para a realização do Programa apresenta-se problemática, ao assumir que o modelo de gestão educacional, o modelo didático-pedagógico e o modelo de gestão administrativa dos colégios militares seriam a solução para o enfrentamento das questões advindas da vulnerabilidade social dos territórios em que as escolas públicas estão inseridas e que teriam as características necessárias para alcançar o tipo de atendimento universal previsto para a educação básica regular, ignorando que colégios militares são estruturalmente, funcionalmente, demograficamente e legalmente distintos das escolas públicas regulares.


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