O aviso foi dado pelo próprio presidente da Argentina, Javier Milei, em seu discurso de posse, no último domingo (10/12): "Esse novo contrato social nos propõe um país distinto, um país no qual o Estado não dirija nossas vidas, mas vele por nossos direitos. Um país no qual aquele faz, paga por isso. Um país no qual quem bloqueia a rua, violando os direitos dos seus concidadãos, não recebe assistência da sociedade". Seis dias antes do primeiro protesto contra as medidas de austeridade fiscal, agendado pela entidade Polo Obrero ("Polo Operário"), a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, apresentou um "protocolo para a manutenção da ordem pública" e advertiu que "haverá consequências" contra aqueles que tomarem as ruas.
A partir de agora, as autoridades utilizarão a força contra manifestantes e não permitirão o bloqueio de vias ou piquetes que impeçam a livre circulação dos argentinos. Pais e responsáveis que levarem crianças para os protestos também serão punidos. As celebrações religiosas e eventos esportivos, como maratonas organizadas por empresas privadas, não estarão sujeitos ao protocolo de Bullrich.
"Para realizar essas medidas, utilizaremos a mínima força necessária e suficiente, a qual será graduada de forma proporcional à resistência", avisou Bullrich. "As quatro instâncias federais, além do serviço penitenciário federal, intervirão frente a interrupções de vias, piquetes ou bloqueios, sejam eles parciais ou totais. A lei não se cumpre pela metade, cumpre-se ou não se cumpre", acrescentou. "Saibam que, quando se toma as ruas, há consequências. Vamos colocar ordem no país, a fim de que o povo possa viver em paz", reiterou a ministra.
O anúncio de Bullrich ocorre às vésperas do 22º aniversário de violenta repressão a protestos contra o governo do então presidente Fernando de la Rúa. Entre 19 e 20 de dezembro de 2001, uma onda de protestos contra a Casa Rosada terminou em 38 mortos e na renúncia do mandatário.
Lideranças da esquerda imediatamente questionaram a legalidade do protocolo de Bullrich e ratificaram que realizarão uma marcha com mais de 50 mil pessoas, no centro de Buenos Aires, na próxima quarta-feira (20/12). "O que lhes incomoda é que protestem contra as medidas do governo. A 'liberdade de circulação', para eles, é pura falácia. (...) Todas as medidas tomadas pelo governo constituem um profundo ataque às condições de vida de milhões de pessoas, por isso a urgência e a gravidade dos anúncios de Bullrich", disse a deputada e ex-candidata presidencial Myriam Bregman, citada pelo jornal Clarín. "Ela prefere violar a Constituição a expressar descontentamento." O Partido Obrero realizou uma entrevista coletiva, na qual denunciou uma "provocação" e um "plano de guerra contra o povo". Além de confirmar o protesto de 20 de dezembro, reforçou que o direito a se manifestar está amparado pela Constituição.
Doutor em ciência política e professor adjunto de defesa e segurança internacional pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidad de Buenos Aires (UBA), Sergio Eissa afirmou ao Correio que as manifestações públicas, contra ou a favor do governo, têm a ver com uma concepção de democracia ampla e substantiva. "A democracia não é apenas votar a cada dois anos, mas também exercer o direito de protestar. No entanto, até hoje, a Argentina não resolveu esse fenômeno dos piquetes na década de 1990. Ante a implementação de uma política neoliberal, não se regulou o direito a protestar com o direito de circular livremente", explicou. "O que Bullrich anunciou não foi uma proibição ao protesto, mas que será possível manifestar-se na calçada. É preciso ver como funcionará isso e como as organizações sociais reagirão", acrescentou. Ele lembra que a Argentina possui tradição de protestos sociais que começaram nos anos 1990.
Eissa reconhece, no entanto, que boa parte da sociedade argentina, especialmente em Buenos Aires, sofre com o impacto das manifestações sobre o trânsito. De acordo com o estudioso da UBA, a Argentina também é uma república federativa e, por isso, Bullrich somente conseguirá implementar seu plano usando as forças federais e dentro do território federal, além de rodovias. "No caso de Buenos Aires, será preciso coordenar a resposta com o governo da cidade de Buenos Aires e com a sua respectiva política. Outras províncias também precisarão atuar em consonância com seus respectivos governos e suas forças policiais."