25/01/2024 às 14h48min - Atualizada em 25/01/2024 às 14h48min

Argentina: Sindicatos exibem força e fazem greve contra Javier Milei

Multidão sai às ruas de Buenos Aires e de todas as províncias, em meio à primeira greve geral enfrentada pelo governo do ultralibertário. Protestos exigem revogação de reformas econômicas impostas por megadecreto e pela chamada "Lei Ônibus"

​Vista aérea do centro de Buenos Aires e da região do Congresso tomados pelos manifestantes: pressão contra medidas adotadas por Milei - (crédito: Tomas Cuesta/AFP)

Quarenta e cinco dias depois de ascender ao poder, Javier Milei enfrentou a primeira greve geral, seguida de uma mobilização massiva em Buenos Aires e em todas as principais cidades da Argentina — Corrientes, Rosario, Córdoba, Mendoza e Mar del Plata. A paralisação começou ao meio-dia e se encerrou à meia-noite. Convocadas pela Confederación General del Trabajo (CGT), centenas de milhares de pessoas ignoraram ameaças de retaliação do governo, desafiaram um "protoloco antipiquete" e saíram às ruas para protestar contra as modificações no regime laboral impostas pelo decreto de necessidade e urgência (DNU) e pela "Lei Ônibus".

O pacote de 664 artigos prevê uma revolução no sistema econômico e uma ampla reforma trabalhista, com a limitação ao direito de greve, mudanças no financiamento sindical, a valorização do livre mercado e regulações sobre os aluguéis. Sem o número necessário de deputados para aprovar pontos sobre exportação que compõem a "Lei Ônibus", a votação do texto no Congresso foi adiada para a próxima terça-feira. De acordo com a imprensa argentina, Milei excluiu ou revogou 141 artigos da legislação.

Enquanto os protestos ocorriam em todo o país, impulsionados pelo slogan "Não se vende a Pátria", a Casa Rosada sofria nova derrota. A Justiça atendeu a um pedido da CGT e invalidou seis artigos da DNU que contemplavam modificações no contra-cheque, na não obrigatoriedade de repasse financeiro aos sindicatos e no direito de realização de assembleias. A ministra da Segurança, Patricia Bullrich, e o porta-voz da Presidência da Argentina, Manuel Adorni, minimizaram a mobilização. "De 21 milhões de trabalhadores, apenas 0,19% se mobilizou, se considerarmos, entre os  trabalhadores, a La Cámpora (organização política juvenil peronista) e as organizações sociais. Quarenta mil pessoas. Fracasso total", escreveu Bullrich na rede social X, o antigo Twitter. Às 19h desta quarta-feira (24/1), trens e ônibus de algumas empresas aderiram à greve.

Três horas antes do início da paralisação, ela provocou a CGT, a Justiça e o próprio establishment político. "Sindicalistas mafiosos, gerentes da pobreza, juízes cúmplices e políticos corruptos. Todos defendendo seus privilégios, resistindo à mudança decidida democraticamente pela sociedade e liderada, com determinação, pelo presidente Milei. Não há greve que nos detenha, nem ameaça que nos amedronte", avisou a ministra, que criou um protocolo para impedir os manifestantes de bloquearem ruas e avenidas.

"Alguns milhares parando, alguns milhares trabalhando. Fim", ironizou Adorni. Milei acompanhou os protestos na Quinta de Olivos, residência oficial do governo, e não se reuniu com o gabinete. Assessores afirmaram ao jornal Clarín que o presidente estava "tranquilo".

Além de organizações sociais, participaram do ato em Buenos Aires os sindicatos de azeiteiros, jornalistas, associações de bairro, entidades de defesa dos direitos humanos e trabalhadores das áreas da cultura, da saúde e da ciência. Em discurso diante do Congresso, Pablo Moyano — vice-secretário-geral do Sindicato dos Caminhoneiros da Argentina — fez uma ameaça contra o ministro da Economia, Luis Caputo. "Se continuar com estas medidas, os trabalhadores vão carregar o ministro nos ombros para jogá-lo no Riachuelo", disse, ao mencionar o rio que demarca a fronteira sul de Buenos Aires.

Teste no Congresso
Para Miguel De Luca, professor de ciência política da Universidad de Buenos Aires, o governo Milei enfrenta seu maior teste não nas ruas, mas no Congresso. Ele lembrou ao Correio que o pacote de medidas econômicas da Casa Rosada não conseguiu maioria sólida, na Câmara dos Deputados, que garanta sua aprovação. "Aqui, o governo joga todas as suas fichas em um cenário econômico e social muito complicado," advertiu, por meio do WhatsApp.

Líder do Polo Obrero e responsável pela organização de piquetes em Buenos Aires, Eduardo Belliboni afirmou ao Correio que a adesão à paralisação foi massiva, principalmente por parte de trabalhadores sindicalizados. "Houve muitas organizações sociais que participaram do ato. A Plaza Congreso ficou lotada, com cerca de 800 mil pessoas, que se reuniram até a Avenida 9 de Julio. Foi uma grande mobilização, um respaldo popular à continuação do nosso plano de luta, até derrotarmos a política de Milei, o DNU e a 'Lei Ônibus'", disse.

Belliboni assegurou que o protocolo de Bullrich "fracassou por completo". "Nós interrompemos o trânsito nas ruas e em avenidas, não porque tínhamos vontade de fazê-lo, mas porque a multidão ultrapassou todos os prognósticos. O protocolo inexistiu", comentou. Ele relatou que os manifestantes "não receberam nenhuma provocação" da polícia. "A mensagem foi contundente: não aceitaremos essa política de Milei, nem o DNU, nem as restrições das liberdades e a redução dos salários."

Rodolfo Aguiar — secretário-geral da  Asociación Trabajadores del Estado (ATE) — classificou a manifestação como "multitudinária" e "contundente" em toda a Argentina. Ele garantiu ao Correio que a adesão do funcionalismo público chegou a 95%. "Em todo o país, serviços ficaram restritos. Não temos dúvidas de que as ruas começaram um plebiscito sobre o programa econômico de Milei. Mobilizado, o povo começou a rechaçar o ajuste potente e repressivo que o governo pretende impulsionar", comemorou, por telefone. "Apesar das tentativas de intimidação e de criminalização dos protestos sociais, o povo saiu às ruas para defender a Pátria."

Aguiar ponderou que todos os pontos da "Lei Ônibus" prejudicam a classe operária. Segundo ele, as medidas tentam pôr fim aos direitos individuais e coletivos dos trabalhadores. "Precarizam o salário e o emprego. Nem sequer permitem realizarmos assembleias. Também proíbem a sindicalização e vetam a participação de funcionários públicos em atos políticos. Violentam todas as garantias constitucionais, além dos direitos trabalhistas, sociais, políticos e civis. Se essa legislação for aprovada, a democracia cairá morta", advertiu o dirigente da ATE.

Depois de participar dos protestos e de aderir totalmente à greve, Matías Fachal — secretário-geral da Federación Judicial Argentina (FJA) — avaliou de forma "extremamente positiva" a mobilização na maioria das províncias do país. "Nossa entidade adere à Central de Trabajadores de la Agentina Autónoma. Somos um dos principais objetivos atacados por Milei, tanto no DNU, quanto na 'Lei Ônibus'. Esperamos que a massiva manifestação seja levada em conta pelos deputados e deputadas, no momento de apreciarem e votarem o projeto de lei", disse à reportagem. Fachal acusou o governo de pretender submeter à venda e à privatização mais de 40 empresas do Estado, de anular a lei de aluguéis e de "rifar" o Fundo de Garantia de Sustentabilidade, o qual permite aos trabalhadores garantirem a aposentadoria. 

Secretário-geral do Sindicato Único dos Trabalhadores nas Indústrias de Artefatos de Borracha da Argentina (Sutna), Alejandro Crespo acredita que a mobilização de ontem mostra que os trabalhadores tomaram consciência da gravidade da situação econômica do país, ante a desvalorização de 130% no peso; a inflação de 25,5% em um mês; e o atraso nos salários. "Todos esses componentes visam arrasar com as conquistas obtidas por nossos pais e nossos avós. Essa geração tem a obrigação de defender toda a luta pelos direitos conquistados, a fim de deixarmos nossos filhos em situação melhor. O plano macabro de Milei busca quebrar a moral da classe trabalhadora, não apenas com a imposição de um forte ajuste, mas culpando os trabalhadores pela situação econômica e atacando os seus direitos", comentou, por telefone.


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