A maior operação de deportação em massa da história dos EUA. Foi isso que Donald Trump prometeu durante a sua campanha e no seu discurso de tomada de posse do segundo mandato.
Tornou-se claro que as suas duras políticas de imigração não são dirigidas apenas contra os migrantes que chegam à fronteira sul, por vezes em caravanas, mas também contra os imigrantes sem estatuto de imigração legal que já vivem em solo americano.
E para ajudar a remover esses migrantes do domínio dos EUA, o governo Trump recorreu a uma lei de guerra do século XVIII: a Lei dos Inimigos Estrangeiros (Alien Enemies Act).
"Nosso governo não protege nossos cidadãos americanos cumpridores da lei, mas fornece abrigo e proteção a criminosos perigosos que entraram ilegalmente em nosso país vindos de todo o mundo", disse Trump em seu discurso de posse.
"Toda a entrada irregular nos EUA será interrompida. Enviarei tropas para a fronteira sul para repelir a invasão desastrosa do nosso país", acrescentou, ao mencionar a Lei dos Inimigos Estrangeiros, de 1798.
Esta regra com 227 anos dá aos presidentes autoridade para deter e expulsar cidadãos estrangeiros de países com os quais a sua nação está em guerra. Ou seja, nações com as quais os EUA mantêm hostilidades reais.
A lei é conhecida pelo seu papel na prisão de alemães, italianos e japoneses que vivem nos EUA. Mais de 30 mil estrangeiros dessas nações passaram a guerra presos em campos de concentração porque o governo os considerou potencialmente perigosos.
Mas embora Trump esteja há meses planejando com seus conselheiros como cumprir a sua promessa de realizar essa ofensiva sem precedentes contra a imigração legal e ilegal, até agora o presidente americano não recorreu formalmente à regra. Ele tem, no entanto, mencionado a lei em seus discursos e entrevistas.
Consequências
Se Trump decidir usar a Lei dos Inimigos Estrangeiros ao invés da lei de imigração existente, "isso daria ao seu governo um poder executivo muito amplo e irrestrito para deter e expulsar, à vontade, imigrantes sem documentos", explica Dan Tichenor, professor de Ciência Política na Universidade de Oregon.
O vice-presidente JD Vance afirmou que as deportações poderiam começar com um milhão de pessoas.
"A norma autoriza os presidentes a agilizar o processo de deportação, deixando os não-cidadãos sem possibilidade de recurso aos tribunais de imigração", afirma Tichenor.
Ao eliminar o processo legal e os recursos aos quais os imigrantes podem recorrer, o tempo dos processos seria reduzido, permitindo com quem as deportações ocorressem mais rapidamente e em maior escala, tal como Trump prometeu.
"Esta lei permite ao presidente discriminar os imigrantes com base no seu país de cidadania ou no seu local de nascimento, ou seja, na sua ascendência. E, como o Supremo Tribunal dos EUA reconheceu, a discriminação baseada na ascendência levanta as mesmas preocupações sérias que a discriminação baseada na raça", lembra Katherine Yon Ebright, do Centro Brennan para a Justiça.
A advogada acredita que os venezuelanos nos EUA podem ser o grupo mais vulnerável.
"Há alguns indícios de que Trump poderia usar a lei para ordenar a detenção e deportação de todos os venezuelanos com mais de 14 anos, incluindo residentes permanentes, que não sejam cidadãos norte-americanos", afirma ela.
Venezuelanos, salvadorenhos e mexicanos
Mas Yon Ebright admite que é mais provável que Trump escolha os venezuelanos "considerados perigosos" ou "considerados membros do Trem de Aragua", uma sangrenta gangue venezuelana que se expandiu pela América Latina e está presente nos EUA.
Como a Lei dos Inimigos Estrangeiros não exige provas para determinar se alguém pertence ou não à gangue, "qualquer venezuelano pode ser considerado uma ameaça e estar sujeito a perseguição, mesmo que não haja base real para essa acusação", acrescenta o pesquisador.
De acordo com as estimativas mais recentes do Migration Policy Institute, com sede em Washington, existem aproximadamente 11 milhões de imigrantes sem documentos vivendo nos Estados Unidos.
Só o México já representa mais da metade dessa estimativa, enquanto a América Central responde por 15%. Os especialistas acreditam que isso coloca essas populações na mira da lei.
"Trump pretende dizer que os EUA estão em guerra com os cartéis de drogas que controlam certos países latino-americanos como pretexto para invocar a lei. Tal tentativa será certamente julgada pelos tribunais federais", estima o professor Tichenor.
E tanto o texto como a história da Lei dos Inimigos Estrangeiros apresentam enormes obstáculos jurídicos à administração Trump.
Em primeiro lugar, porque os EUA não estão numa guerra aberta e, em segundo lugar, tudo indica que será difícil para a equipa de Trump provar que a imigração é uma "invasão" estrangeira hostil.
Por trás do seu argumento está a ideia de Trump - repetida em inúmeros discursos - de que existem governos estrangeiros que enviam intencionalmente legiões de imigrantes sem documentos, indesejados e violentos para os EUA.
Em diversas ocasiões, o presidente citou expressamente o México e a Venezuela. É por isso que os analistas acreditam que existe o risco de a administração republicana rotular alguns países latino-americanos como narcoestados desonestos em guerra com os Estados Unidos.
"A lei de 1798 deixa claro que uma 'invasão ou ataque predatório' deve ser realizada por uma 'nação ou governo estrangeiro' para ser invocada."
"No entanto, o Congresso não declarou guerra a nenhum país há mais de 80 anos, nem nenhum outro governo lançou uma invasão contra o território americano", lembra Tichenor.
Presidentes que invocaram a lei no passado fizeram isso durante conflitos de guerra, como James Madison na Guerra de 1812 ou Woodrow Wilson na Primeira Guerra Mundial e Franklin Roosevelt na Segunda Guerra Mundial, quando a lei foi usada para internar 31 mil estrangeiros de ascendência japonesa, alemã e italiana.
"Uma lei em tempos de guerra não tem lugar em tempos de paz. Se Trump avançar de qualquer maneira, certamente enfrentará desafios legais por parte das pessoas afetadas, de grupos de defesa e de estados", afirma Yon Ebright.
Criminalização dos imigrantes
"A questão que os tribunais terão que resolver é se a 'invasão' contemplada pela lei de 1798 é uma invasão tradicional, de estilo militar, pelas forças armadas, ou se a sua interpretação pode abranger pessoas que vêm para os Estados Unidos em busca de trabalho ou fugindo de perseguições", diz o acadêmico César Cuauhtémoc García Hernández, especialista em estudos de imigração e professor de Direitos Civis e Liberdades na Faculdade de Direito Moritz da Universidade do Estado de Ohio.
"O que vemos hoje é que Trump equipara os imigrantes que chegam de Honduras fugindo da pobreza ou da Venezuela fugindo do regime político de Maduro, com um soldado alemão capturado após uma batalha da Segunda Guerra Mundial".
"O medo dos imigrantes aumentou nas últimas décadas. É quase impossível ouvir os políticos falarem sobre imigração sem associá-la ao crime", acrescenta.
"Há um século, se falava dos imigrantes como uma força de trabalho que fortalecia a economia de um país; agora vivemos numa época em que os imigrantes são tratados como criminosos. E essa retórica se expandiu sob a influência de Donald Trump no Partido Republicano e, obviamente, no gabinete presidencial", explica o professor.
Outra parte do problema, salienta ele, é que viver nos EUA sem documentação não é um crime de qualquer tipo. É uma violação da lei administrativa civil do governo federal, mas não é um crime.
Título 42
Não é a primeira vez que Trump desenterra uma lei antiga para deportar migrantes.
Durante a pandemia, a sua primeira administração citou riscos para a saúde pública como justificativa para fechar as fronteiras do país e deportar rapidamente os migrantes que tentaram atravessar ilegalmente para os EUA.
Na época, ele mencionou o "Título 42", uma antiga lei de saúde pública que permitia o bloqueio dos migrantes antes que eles colocassem os pés no país e até limitava a oportunidade de solicitar asilo.
"O sonho americano retornará em breve", disse Trump no discurso de posse. Mas certamente para muitos na América Latina esse sonho está agora ficando mais distante. É provável que o Supremo Tribunal tenha a última palavra.