As interceptações telefônicas da Operação Panoptes, que apura a venda de vagas em concursos públicos e vestibulares ao longo dos últimos cinco anos, suscitaram provas incisivas sobre a atuação da organização criminosa encabeçada por Helio Ortiz. Identificação de servidores que conquistaram os cargos com certificados acadêmicos falsificados, contato com funcionários da Câmara Legislativa para a obtenção de informações sobre o certame da Casa, conexão entre associações criminosas de diferentes estados, passo a passo das ilicitudes, listagem de uma infinidade de seleções burladas e, até mesmo, a venda de um bebê: todos os tópicos são abordados nos grampos realizados pela Divisão Especial de Repressão ao Crime Organizado (Deco), com autorização judicial, antes da deflagração das investigações.
A íntegra das medidas cautelares segue sob sigilo na Justiça. Contudo, ao aceitar a denúncia do Ministério Público do DF e dos Territórios (MPDFT) contra o núcleo da Máfia dos Concursos, pelos crimes de organização criminosa, fraude a certame de interesse público e falsificação de documento público, o magistrado da Vara Criminal e Tribunal do Júri de Águas Claras, Gilmar Rodrigues da Silva, determinou a publicidade dos autos da ação penal.
Os documentos revelam detalhes sobre as investidas da organização criminosa. Em relatório complementar enviado pela Polícia Civil à Justiça em 4 de setembro, há a comprovação da venda de um certificado de pós-graduação fraudado pelo valor de R$ 6 mil. Requisitado para que Adriana (nome fictício), 42 anos, pudesse assumir, em julho, o posto de enfermeira no Hospital Universitário de Brasília (HUB), o diploma de especialização em “UTI Urgência e Emergência” foi providenciado por Johann Gutemberg, preso preventivamente desde agosto.
O relatório detalha as negociações com mensagens e áudios trocados entre os investigados via WhatsApp. Após a posse, Adriana chega a comemorar: “Trabalhando já! Pensa a alegria”, diz. De pronto, Johann responde: “Você merece”. A moça tomou posse do cargo em 3 de julho e tem carga horária de 36 horas semanais. À Deco, ela assumiu a fraude. A depoente “esclarece que o concurso em que passou na Universidade de Brasília (UnB) foi totalmente por seus méritos e não realizou nenhum tipo de fraude. Seu erro foi apenas não observar a exigência imposta para assumir o cargo. Depois, errou também em comprar o certificado”, destaca o termo de declaração.
O concurso para o provimento de cargos no hospital aconteceu em 2013. Em nota, o HUB informou que não recebeu notificação sobre o assunto e desconhece a situação, “mas vai apurar o caso para prestar os esclarecimentos necessários”. O Correio tentou contato com a defesa de Johann Gutemberg, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
Apesar de pontuais falsificações de documentos públicos, o carro-chefe da associação criminosa era a venda de vagas em concursos. A seleção da Câmara Legislativa, cuja estimativa de inscrição alcança 100 mil candidatos, estava na mira do grupo. A Deco destaca que, em uma das interceptações, Helio Ortiz afirma que “se reuniu com o chefe de segurança da Câmara Legislativa, transmitindo a ideia que tratava de conversa sobre o futuro certame da Casa, sem dúvidas para fraudes do mesmo”, descreve o relatório.
Ao Correio o presidente do Legislativo local, Joe Valle (PDT), garantiu a lisura do certame. Para embasar a argumentação, o pedetista usou um ofício assinado pelo delegado adjunto da Deco, Adriano Valente. No documento expedido a pedido da Casa, o policial da Deco pontua que “não existem, até o momento, indícios de que a banca organizadora (Fundação Carlos Chagas) possua funcionários ligados ao grupo criminoso detido ou envolvidos em fraudes de concurso público”. “Um chefe de segurança nem sequer tem ligação com a seleção. Os responsáveis pelas organizações preliminares do concurso são servidores de carreira. Todo o processo é público e está dentro da legalidade”, defendeu Joe.
Novos inquéritos
Além de concursos, o grupo liderado por Helio Ortiz fraudava vestibulares de universidades públicas e privadas. Vagas no curso de engenharia elétrica chegavam a R$ 60 mil. O custo de espaços em faculdades de medicina, por outro lado, beirava os R$ 220 mil. Conforme o Correio mostrou com exclusividade no mês passado, um homem assumiu ter pago para que a filha conseguisse a aprovação em uma instituição de ensino de Brasília — a moça, contudo, não obteve sucesso.
Ao apurar tais irregularidades, a Polícia Civil encontrou indícios de novas ilicitudes. Conduzida coercitivamente para prestar esclarecimentos à Deco, a suspeita de integrar a organização criminosa Alda Maria mencionou que duas vagas são disponibilizadas às indicações do Conselho Regional de Medicina (CRM) em cada vestibular de uma faculdade privada do DF. Se não forem preenchidos, os espaços voltam para a universidade, que as vende. Para investigar o caso, a Deco instaurou um inquérito em separado.
Em nota, o CRM-DF negou qualquer relação de indicação de vagas para vestibulares de medicina. “Cabe ao depoente provar as alegações para a polícia, uma vez que a denúncia é infundada”, ressalta a assessoria do Conselho, em nota. Ao aceitar a denúncia contra o núcleo da Máfia dos Concursos, o juiz responsável determinou que a entidade seja oficiada para prestar esclarecimentos acerca da acusação.
O conteúdo das interceptações telefônicas também envolve uma situação escabrosa: negociações entre Helio Ortiz e uma interlocutora sobre a venda de um bebê. A princípio, a Polícia Civil descarta a possibilidade de a menção configurar-se apenas como um codinome e investiga a situação em outro inquérito.
Como atuava a máfia
» Com a promessa da aprovação em concursos, integrantes do esquema fraudulento abordavam estudantes, na maioria das vezes, em portas de cursos preparatórios e universidades. Há relatos, porém, de aliciamentos também via WhatsApp, em hospitais e portarias de edifícios. Todas as oportunidades eram aproveitadas.
» A falta do certificado de curso
superior ou de outras especializações não era um problema. Quando necessário, a organização criminosa fraudava os diplomas.
» Para aderir ao conluio, os concurseiros tinham de desembolsar uma entrada, cujo valor variava
entre R$ 5 mil e R$ 10 mil,
a depender do cargo desejado.
» O modus operandi da fraude ocorria em quatro formatos diferentes: o candidato usava um ponto eletrônico e recebia o gabarito durante a aplicação do exame; o concorrente utilizava aparelhos celulares deixados em alguma parte do local de prova, geralmente em banheiros, para a obtenção de respostas; pessoas alheias ao concurso usavam identidades
falsas para realizar a prova no lugar dos verdadeiros concorrentes; ou funcionários das bancas examinadoras participavam da fraude.
» Após a aprovação, o candidato pagava o valor equivalente a 20 vezes a remuneração inicial prevista no edital. Os delegados detalham que,
na maioria das vezes, os concorrentes adotavam sistemas de crédito consignado para arcar com os custos.
O papel de cada um
» Helio Ortiz e Bruno Ortiz, ex-funcionário público e oficial de Justiça do Pará afastado: comandavam a associação criminosa, escolhendo os aliciadores e os “pilotos” — especialistas que realizavam as provas e repassavam os gabaritos a concurseiros. Pai e filho também criavam os métodos de ação, compravam os equipamentos necessários às fraudes, realizavam os pagamentos aos integrantes da Máfia, além de aliciarem estudantes.
» Rafael Rodrigues, braço direito de Bruno Ortiz: contribuía com a cooptação de concurseiros.
» Johann Gutemberg, sócio de uma faculdade em Taguatinga: fornecia diplomas falsos quando os concorrentes a vagas públicas não detinham a especialização necessária.
R$ 5.484.868,20
Valor que os integrantes da máfia terão de devolver aos cofres públicos por determinação do MPDFT