Tem gente no Planalto fazendo vodu com bonequinho de Raquel Dodge – e é bom que a procuradora geral da República tome cuidado com os despachos (de macumba) nas encruzilhadas de fim de ano. O texto da Adin impetrada ontem pela PGR no STF contra o generoso indulto decretado por Michel Temer para condenados por corrupção é a mais dura peça assinada por Dodge contra um ato do governo desde que assumiu o cargo.
Além de dizer que Temer violou a Constituição porque o chefe do Executivo não tem poderes ilimitados para ‘aniquilar” as condenações criminais, a PGR chama o ato de arbitrário. Raquel cita diretamente a Lava Jato e as investigações sobre corrupção ao dizer que o decreto de Temer se destina ‘claramente’ a favorecer a impunidade.
Não se pode dizer que tenha sido a primeira flechada de Raquel contra o Planalto. Até agora, a nova procuradora tem mantido ações do antecessor Rodrigo Janot contra políticos e levado adiante praticamente todos os procedimentos criminai s da PGR. Mas caiu mal no entorno do presidente pelo tom forte e, sobretudo, porque pode prenunciar coisas piores para Temer e seus aliados no ano eleitoral de 2018. Temer e cia estão furiosos e assustados.
Afinal, o governo e os políticos acusados na Lava Jato haviam transformado o ex-PGR Rodrigo Janot numa espécie de inimigo número 1 e vinham se dedicando a denegri-lo e desgastá-lo como estratégia de defesa, sobretudo depois do episódio JBS. A troca de procurador, e as brutais diferenças entre um e outro – Janot, o demônio, e Raquel, o anjo – seriam importante elemento nessa narrativa.
Raquel Dodge, porém, não entrou no jogo – aliás, como previam os que a conheciam de perto. Pode até ter alimentado esperanças do Planalto e adjacências ao disputar a nomeação, sobretudo por viver em constante disputa com Janot e seu grupo. Mas iludiram-se os governistas que esperavam uma nova engavetadora geral da República.
Hoje em dia, para ser PGR, um sujeito precisa, antes da nomeação do presidente da República, do apoio de sua própria categoria. Aliás, como todos os procuradores que lá ingressaram por rigoroso concurso e lá passaram a maior parte de suas vidas profissionais. A fidelidade desse pessoal é, sobretudo, às bases internas e aos principios fundamentais da ação do Ministério Público, fortalecido e cada vez mais poderoso no pós-Constituição de 1988. A isso se chama também instituição.
Quem acha que Raquel Dodge será um novo Brindeiro vai quebrar a cara.
Quem conhece de perto Raquel Dodge afirma que as apostas de que ela vai pisar no freio na Lava Jato são no mínimo equivocadas. O fato de ser apoiada por enrolados caciques do PMDB não pode ser comprado pelo valor de face. A própria atuação de Rodrigo Janot recomenda essa cautela.
anot chegou ao comando da Procuradoria-Geral da República com o apoio decisivo da ala no Ministério Público mais identificada com o PT. Eugênio Aragão, último ministro da Justiça de Dilma Rousseff, foi um de seus principais cabos eleitorais.
Quando Janot endossou denúncias contra Lula e apoiou o impeachment de Dilma, essa turma se sentiu traída.
Como Rodrigo Janot, Raquel tem uma longa e impecável carreira profissional. No passado, eles inclusive jogaram no mesmo time. Depois, tornaram-se antagonistas.
Na campanha interna para a eleição da lista tríplice, Raquel virou o alvo a ser abatido pela turma de Janot, que tem forte militância na associação nacional dos procuradores. Pelo que se lia na imprensa, a impressão era de que Raquel, apontada como adversária da Lava Jato, poderia estar queimada entre os colegas.
Sua expressiva votação mostrou que os tais ataques não produziram os resultados esperados.
É que seus colegas a conhecem, acompanham sua dedicação ao trabalho, e sabem que ela é uma profissional metódica, competente e séria. E corajosa.
Quem acompanhou a força tarefa no Acre, chefiada pelo procurador José Roberto Santoro, conta como a franzina Raquel, a única mulher do grupo, impunha respeito ao tomar depoimentos de temidos assassinos do bando de Hildebrando Pascoal, aquele da motosserra.
Em Brasília, ela comandou a Operação Caixa de Pandora que prendeu o então governador José Roberto Arruda e escancarou a corrupção generalizada na capital do país. Nessa operação, teve problemas de relacionamento com a Polícia Federal. Os delegados a definiam como “mandona”.
Alguns de seus colegas no Ministério Público dizem que a avaliação dos policiais estava correta.
A praia de Raquel Dodge no Ministério Público nem era o combate à corrupção. Desde que lá chegou em 1987, seu foco foram os direitos humanos. Populações indígenas, Sistema Único de Saúde, preservação do meio ambiente e a pistolagem nos rincões do país foram sua principal pauta. O procurador Mário Lúcio Avelar, seu amigo, quase morreu numa das investidas contra a bandidagem no interior do Pará.
Trabalho escravo é um capítulo à parte. Ela se dedicou intensamente a causa. Ajudou a montar um banco de dados que deu eficácia a esse combate. Foi também sua tese de mestrado em Harvard.
O apoio de investigados, como José Sarney, Renan Calheiros e Michel Temer, evidentemente não é uma boa referência. Mas quem acha que, por causa disso, Raquel Dodge se tornará um Geraldo Brindeiro de saia vai quebrar a cara.
Raquel é uma das mais apaixonadas defensoras da instituição Ministério Público. Aprendeu isso em casa. Seu pai, José Ferreira, foi um respeitado professor de inglês e advogado em nossa Morrinhos. Saiu dali quando se tornou juiz de Direito no então Norte de Goiás, hoje Tocantins. Depois, aprovado em novo concurso, virou procurador da República e veio para Brasília.
Pode conferir.