05/03/2018 às 06h46min - Atualizada em 05/03/2018 às 06h46min

Área sob conflito fundiário próxima ao Plano Piloto

Posseiros, chacareiros e grupos de sem-terra transformaram região de 10,8 mil hectares e próxima ao Plano Piloto em ponto sensível a disputas. O terreno pertence à União, mas sofre com invasões constantes

Correio Braziliense

 

 

A evolução de parcelamento regular na Rota do Cavalo

4 de janeiro de 2004 (Google Earth/Reprodução)

8 de maio de 2009 (Google Earth/Reprodução)

5 de junho de 2017 (Google Earth/Reprodução)

O acesso aos acampamentos ilegais da região tem guaritas e estabelece regras: "Desligue o farol, acenda a luz interna do carro e identifique-se"

A 25km quilômetros do Palácio do Planalto, uma área pertencente à União virou cenário de conflitos fundiários. A Fazenda Sálvia, entre Sobradinho e Planaltina, é a terceira maior propriedade do governo federal no DF. São 10,8 mil hectares com os mais diversos tipos de ocupação: posseiros, chacareiros, movimentos sociais, ciganos e residentes urbanos. A localização privilegiada, a proximidade com o Plano Piloto e a pouca restrição ambiental fazem com que os terrenos sejam cobiçados.

Com a promulgação da Lei Federal nº 13.465, que visa à regularização de terras, a disputa se intensifica. A nova norma facilitou a regularização em áreas urbanas. Entretanto, só serão legalizadas as invasões instaladas até 22 de dezembro de 2016. Como não há marco temporal para as áreas rurais, elas se tornam alvo de ocupações e parcelamentos irregulares. A Fazenda Sálvia, de acordo com o Plano Diretor de Ordenamento Territorial (Pdot) do DF, está inserida, predominantemente, em zona rural de uso controlado (leia Para saber mais). Apenas alguns trechos estão destinados à área urbana.

Além da facilidade oferecida pela legislação, há uma série de incertezas jurídicas, porque boa parte da regra é questionada pela Procuradoria-Geral da República (PGR). O principal ponto é o fato de que cabe ao município e ao Distrito Federal a competência de regularização do território, e não à União. “A lei está trazendo dúvidas, especialmente no DF, onde a situação fundiária é complexa. Mas é importante ressaltar que, embora seja um período de incertezas, a ocupação de terra pública continua um ato ilícito”, explica Rogério Oliveira Anderson, professor de direito do Iesb.

Diante disso, as invasões crescem a toque de caixa. Não é possível precisar as mais antigas e as mais recentes. Barracos de madeirite se multiplicam, assim como loteamentos fechados com guaritas. Questionados pela reportagem, os ocupantes têm as datas na ponta da língua, e as respostas são anteriores ao prazo estabelecido em lei. A Secretaria do Patrimônio da União (SPU) tem dificuldades para mapear as invasões, embora diga que “realiza periodicamente ações de fiscalização”. O órgão informa que tem 276 ocupantes cadastrados, entretanto, é visível que a área tem mais moradores do que o registro oficial. A SPU alegou que a Agência de Fiscalização do DF (Agefis) tem autonomia para coibir invasões irregulares.

Enquanto isso, os conflitos aumentam. Os produtores denunciam parcelamentos ilegais e lutam para manter o ambiente rural. Mas movimentos sociais pedem que seja feita a reforma agrária e denunciam ações agressivas de posseiros. Há, ainda, o apelo urbano — bairros inteiros estão formados e são passíveis de regularização pela nova norma. É o caso de setores como Nova Colina I e II e Mestres D’Armas III.

A Associação Brasileira de Produtores Rurais em Área da União (ABPRU) enviou um ofício ao Governo do Distrito Federal sugerindo um comitê entre o Executivo local e a Secretaria do Patrimônio da União (SPU) para coibir as invasões não só na Fazenda Sálvia, mas nas demais áreas da União. “Com o advento da Lei da Regularização Fundiária, a pressão e os adensamentos urbanísticos sobre as áreas rurais da União localizadas no Distrito Federal têm aumentado de maneira preocupante, ocasionando várias ocupações e parcelamentos irregulares sem observância à legalidade e a qualquer planejamento urbanístico”, diz o documento.

“Estamos preocupados com os parcelamentos irregulares e com o crescimento das invasões. Não queremos que a Sálvia perca sua característica agrícola e se transforme em uma Vicente Pires”, alerta Guilherme Magalhães, diretor administrativo e financeiro da ABPRU. “A situação está tão grave que esse pessoal (dos movimentos sociais) me mostraram até um facão, mas eu não tenho medo”, comenta Manoel Messias da Silva, produtor rural da região e presidente da associação.

Interesses

Ao percorrer o terreno da Fazenda Sálvia, percebe-se os mais diversos tipos de ocupação. A região conhecida como Rota do Cavalo abriga novas invasões. Um dos loteamentos é cercado por placas de metal. Andando pela DF-330, é possível ver o surgimento de um condomínio de classe média. A guarita e os muros pintados de azul indicam que o empreendimento está pronto, mas, por enquanto, não há moradores. Ao lado, um anúncio de venda de lote com a promessa de escritura, sendo que a área é pública e existe apenas uma matrícula em cartório.

Além dos parcelamentos irregulares, existem pelo menos quatro acampamentos de diferentes grupos de sem-terra. Todos têm guarita e regras para visitantes. Em um deles, as ordens são claras: “Desligue o farol, acenda a luz interna do carro e identifique-se”. Em outro, apenas o líder pode comentar algo; os demais moradores não estão autorizados a dar entrevistas. A SPU destinou cinco glebas da Fazenda Sálvia para a reforma agrária, entretanto, apenas um assentamento foi feito. São 1.564 hectares. Desse total, três estão sub judice, e a outra o Incra julga pequena para a implementação de um assentamento. Antônio Alves de Oliveira é coordenador do acampamento Terra Prometida, ligado à Federação Nacional dos Trabalhadores e Trabalhadoras da Agricultura Familiar do Brasil. Ele comenta que 37 famílias vivem em 5 hectares da Sálvia há 6 anos. Eles aguardam a transferência para o terreno do Incra. “A SPU tirou do posseiro e passou para o Incra. Aí, nós fizemos o pedido da terra. O posseiro não estava fazendo bom uso, mas agora ele questiona na Justiça. Estamos esperando só o resultado desse processo judicial para o Incra fazer o parcelamento das chácaras”, explica.

Ciganos

Enquanto pouco é feito, os barracos se multiplicam, assim como os conflitos. Um grupo de sem-terra invadiu uma das áreas do Incra, mais foi expulso por posseiros da região. Os invasores instalaram uma guarita na terra do Incra. Os sem-terra, então, foram remanejados para a margem da rodovia. “Os chacareiros aproveitaram a nossa entrada e entraram também. Depois, nos expulsaram”, contou uma moradora do acampamento que preferiu não ser identificada. “É que eu sou babá, e o meu patrão é advogado, ele não vai gostar de saber que moro em um acampamento”. A moradora conta que o grupo está no local desde 2012. “O meu filho era bebê quando eu cheguei. Agora, ele tem 6 anos”, conclui.

No meio desse quebra-cabeça fundiário, os únicos que estão garantidos são os ciganos. A Secretaria de Trabalho, Desenvolvimento Social, Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos (Sedestmidh) informa que foi assinado um termo de cessão de uso de área da União, via SPU, com a comunidade cigana da etnia Calón. Hoje, 200 pessoas da comunidade estão assentadas na fazenda. A área tem 3,5110 hectares e é monitorada pela pasta. Em 2014, o Ministério Público Federal no Distrito Federal enviou recomendação ao GDF e à SPU solicitando ações políticas para garantir a ocupação de terras para os ciganos.

Palavra de especialista

Demandas da sociedade “A Lei nº 13.465 alterou todo o aporte teórico e conceitual nos últimos anos. Ela é nebulosa e desmontou conceitos. Na verdade, está todo mundo desorientado. A regularização é importante para a gestão do território, mas uma das preocupações do IAB (Instituto de Arquitetos do Brasil) é que se facilite demais a regularização fundiária e se incentive a grilagem. A regularização ficou simplificada demais, principalmente para áreas mais ricas. A regularização precisa atender aos preceitos do Pdot e de leis complementares, sim. No entanto, cada caso deverá ser avaliado pelos órgãos competentes da gestão territorial. É muito frequente no planejamento urbano que áreas rurais sejam incorporadas ao perímetro urbano, ou seja, que o perímetro seja ampliado. A questão é se essa ampliação está atendendo às demandas da sociedade em termos de habitação, infraestrutura e economia. Não conheço os detalhes sobre a fazenda Sálvia, mas vejo que parte dela foi/será destinada à reforma agrária, o que é extremamente importante para o país. Os demais casos devem ser considerados um a um.”

Carolina Pescatori, conselheira do IAB no DF e professora da Universidade de Brasília

Para saber mais

Pouco controle A Fazenda Sálvia é uma das fazendas desapropriadas pela União para a construção de Brasília na década de 1950. Atualmente, o governo federal é dono de 10 propriedades em todo o DF. A Sálvia localiza-se entre Sobradinho e Planaltina. A desapropriação das áreas ocorreu a partir do desenho do engenheiro Joffre Mozart Parada e de Janusz Gerulewicz — os dois fizeram a Planta Índice Cadastral. As propriedades rurais transmitidas à União se localizavam, principalmente, em Luziânia, Planaltina e Formosa. A proximidade com o Plano Piloto e o pouco controle da União sobre essas terras fizeram com que a Fazenda Sálvia se tornasse alvo de invasões constantes. Em 2004, a SPU expressou o desejo de manter a Sálvia com características rurais. Em 2009, a União passou parte das terras para o Incra para fazer reforma agrária.


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