O BRT Sul liga Santa Maria e Gama ao Plano Piloto para atender 95 mil pessoas por dia: obras do projeto custaram mais de R$ 700 milhões, mas segue inacabado.
Mais um legado da Copa do Mundo de 2014 está no centro dos escândalos políticos de Brasília. Depois de mirar o Estádio Nacional Mané Garrincha, a Polícia Federal e o Ministério Público Federal (MPF) deflagraram, ontem, a segunda fase da Operação Panatenaico para investigar o superfaturamento em R$ 208 milhões do BRT Sul, sistema de transporte público expresso que liga Santa Maria e Gama ao Plano Piloto e atende 95 mil pessoas por dia. Entre os 15 alvos dos mandados de busca e apreensão estão os ex-governadores José Roberto Arruda (PR) e Agnelo Queiroz (PT), além do ex-vice-governador Tadeu Filippelli (MDB). Segundo delações de ex-executivos da Andrade Gutierrez, os dois últimos receberam pelo menos R$ 8 milhões em propina com as obras.
Até o fechamento desta edição, a decisão da 10ª Vara Federal que autorizou as diligências em Brasília e São Paulo permanecia sob sigilo. A reportagem confirmou que, além dos três ex-comandantes do Palácio do Buriti, foram alvos dos policiais federais Márcio Machado (PSDB), ex-secretário de Obras de Arruda, e a AB Produções — Canto do Cerrado Filmes. A empresa firmou contrato de fachada com a Andrade Gutierrez no valor de R$ 1,6 milhão por indicação de Filippelli, de acordo com o ex-executivo da empreiteira Rodrigo Ferreira Lopes. Essa seria uma forma de lavar o dinheiro de propina destinado ao ex-vice-governador pelo BRT.
De acordo com as investigações, o sistema viário integra o “acordo de mercado” que dividiu as maiores obras da capital entre as principais empreiteiras do país. Com o esquema fraudulento, os ex-gestores teriam recebido propina em troca do direcionamento do processo licitatório. Diferentemente do Estádio Mané Garrincha, erguido com repasses da Agência de Desenvolvimento de Brasília (Terracap), o custeio do BRT Sul saiu dos cofres federais, por meio do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) Mobilidade Grandes Cidades.
Inicialmente orçado em R$ 587.400.719,83, o sistema de transporte custou R$ 704.709.866,75 aos cofres públicos. O edital de licitação para a escolha das empresas que ficariam responsáveis pela construção do corredor saiu quando Arruda estava à frente do Palácio do Buriti, em 2008. As obras, contudo, começaram apenas em 2011, na gestão do ex-governador Agnelo Queiroz e do ex-vice Tadeu Filippelli. O consórcio responsável pela implementação foi integrado pelas empresas Via Engenharia, OAS, Andrade Gutierrez e Setepla Tecnometal Engenharia.
Laudos da Polícia Federal constataram o direcionamento e a fraude na concorrência pública, enquanto auditorias realizadas pelo Tribunal de Contas do DF (TCDF) e pela Controladoria-Geral do DF apontaram um superfaturamento de R$ 208.762.412,60 — cerca de 25% do custo total do empreendimento. Apesar dos altos valores, o BRT Sul ainda não funciona integralmente. No corredor de 32,2 km, duas estações seguem fechadas: Catetinho, na EPIA Sul/Viaduto do Catetinho, e BRT SMPW, na Quadra 26 do Park Way.
Caixa único de propina
Segundo as delações da Andrade Gutierrez, que embasam em parte a Panatenaico, mantinha-se um caixa que recebia todos os repasses federais e distritais relativos às obras tocadas pela empreiteira. À medida que ocorriam as medições de execução das construções e os órgãos do governo liberavam os pagamentos pelas etapas concluídas, os empresários realizavam o rateio da propina. Com a mistura de valores, subsídios federais eram revertidos em repasses ilícitos a políticos e emissários brasilienses e vice-versa.
De acordo com as declarações de Rodrigo Ferreira Lopes, nas eleições de 2010, Agnelo e Filippelli procuraram representantes das empresas que compunham o “cartel” para pedir propina de R$ 500 mil em cada turno da campanha. Em contrapartida, os então candidatos manteriam o “acordo de mercado” estabelecido na gestão de Arruda. Ao assumir o governo, os repasses continuaram, contou o ex-executivo. A suposta propina equivale a 4% do valor total recebido pela Andrade nas obras do BRT Sul. Rodrigo destacou que, no caso do direcionamento de verbas para Filippelli, parte dos repasses ocorreu em espécie; outra fatia em contratos simulados de prestação de serviço com empresas indicadas pelo ex-vice; e a última por meio de doações oficiais ao MDB.
Além de firmar contrato de R$ 1,6 milhão com a AB Produções, a Andrade fechou acordo simulado de R$ 900 mil com a Logit. Sob a justificativa do recebimento de consultorias em engenharia de tráfego e mobilidade urbana, a empresa realizou o repasse por meio de três boletos de R$ 300 mil, cada um. Dois deles mencionam estudos relativos ao “Arco do Tietê, em São Paulo”. Firmado em 21 de outubro de 2013, o contrato é assinado pelo delator Rodrigo Ferreira e pelo sócio proprietário da Logit Wagner Colombini Martins.
O delator ainda levantou a suspeita de que a OAS e a Via Engenharia, integrantes do consórcio que tocou as obras do sistema de transporte, também pagaram R$ 8 milhões, cada um. Assim, o total de propina recebida por Agnelo e Filippelli pode atingir R$ 24 milhões.
Defesa
Em nota, Luis Henrique Machado, advogado de Arruda, afirmou que “nenhuma obra investigada no âmbito da operação foi realizada no governo Arruda e que o mesmo se encontra à disposição das autoridades para prestar todos os esclarecimentos necessários para elucidação dos fatos”.
As defesas de Agnelo e Filippelli, realizadas, respectivamente, pelos advogados Paulo Guimarães e Alexandre Queiroz, disseram que não se posicionariam, porque não tiveram acesso aos autos. A reportagem não conseguiu contato com o defensor de Márcio Machado, nem com a AB Produções.
Memória
Fraude milionária
Em 23 de maio de 2017, a Polícia Federal deflagrou a primeira fase da Operação Panatenaico para investigar o superfaturamento do Estádio Nacional Mané Garrincha. Inicialmente orçada em R$ 600 milhões, a arena esportiva custou R$ 1,575 bilhão. À época, os ex-governadores José Roberto Arruda (PR) e Agnelo Queiroz (PT), além do ex-vice-governador Tadeu Filippelli (MDB) e outras sete pessoas, ficaram presos por nove dias.
Quase um ano depois, a 12ª Vara Federal aceitou, em abril, as três denúncias propostas pelo Ministério Público Federal (MPF) e tornou réus os ex-gestores e mais nove suspeitos. Eles respondem por corrupção passiva e ativa, organização criminosa, fraude à licitação e lavagem de dinheiro, a depender dos atos de cada um.
Segundo as investigações, políticos e integrantes do alto escalão direcionaram a licitação do complexo esportivo em troca de propina. Arruda, Agnelo e Filippelli teriam lucrado pelo menos R$ 16,6 milhões com a trama. Devido à fraude, o MPF pede o ressarcimento de R$ 52,4 milhões aos cofres públicos. Pelo “acordo de mercado”, que dividiu as maiores obras da capital entre as principais empreiteiras, os comandantes do GDF teriam recebido altas cifras, ainda, por fraudes no Centro Administrativo de Brasília (Centrad) (foto) e no Setor Habitacional Jardins Mangueiral.
Caixa 2 pago para Arruda
A propina repassada em forma de doação não oficial pela Odebrecht à campanha de 2014 do ex-governador José Roberto Arruda (PR) pode ter custeado, indiretamente, a candidatura de Jofran Frejat (PR), que assumiu a chapa depois de o correligionário ter o registro negado pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Ex-executivo da empreiteira, Ricardo Roth Ferraz afirmou que, apesar do recuo de Arruda, não houve devolução dos R$ 966 mil pagos em caixa 2 ao ex-chefe do Palácio do Buriti. Político com o maior número de mandatos de deputado federal pelo DF, Frejat voltará a concorrer ao Executivo local neste ano, com o vice indicado por Tadeu Filippelli (MDB).
Roth prestou as declarações ao Ministério Público Federal (MPF), em delação premiada, divulgada em abril do ano passado. Ele acrescentou que, a pedido do então diretor da Odebrecht João Pacífico, entregou o montante ao operador de propina de Arruda, Sérgio de Andrade do Vale. O ex-executivo afirmou ter realizado o pagamento em duas parcelas, repassadas em São Paulo. A primeira foi de R$ 500 mil, em 9 de junho de 2014. A segunda, de R$ 466 mil, em 8 de setembro, cinco dias antes de Arruda desistir da candidatura e Frejat assumir a frente da campanha.
À época, a mulher do ex-chefe do Buriti, Flávia Arruda, entrou na corrida eleitoral ao lado de Frejat, como vice. Questionado sobre a situação, Roth narrou: “Ele (Arruda) acabou tendo que sair por questões de inelegibilidade. Colocou o vice dele, mas não tiveram êxito”, lembrou. Os procuradores, então, perguntam se o dinheiro retornou. “Não”, respondeu o ex-executivo. “Ele não continuou. O vice, um médico que não me recordo o nome agora, que ficou no lugar dele. Ele (Arruda) até estava na frente. Mas, com isso, o substituto não conseguiu”, complementou. Os representantes do MPF, novamente, perguntaram se os valores foram devolvidos, e ele cravou: “Não. Foi para a campanha”.
“Delações vazias”
Ao Correio, Frejat relatou não ter conhecimento sobre a origem do dinheiro da campanha. “Quando assumi, faltava pouco mais de um mês para a votação. Era uma corrida louca para chegar ao eleitor. Por isso, não arrecadei, negociei ou movimentei recursos. Quem tomou conta da destinação dos valores para a candidatura foi o próprio PR.”
Luis Henrique Machado, advogado de Arruda, alegou que “se tratam de delações vazias, sem elemento corroborativo sério de prova que atestem as versões dos delatores. Todas as contas do ex-governador Arruda foram indicadas e aprovadas”. (AV)