O Brasil, conhecido por décadas por contar com o maior contingente de técnicos de futebol amadores, teve que reciclar-se na esteira dos resultados recentes da Seleção. Penduradas provisoriamente as chuteiras, milhões de comentaristas aguçam agora seus conhecimentos sobre o Direito. Ou, pelo menos, seus palpites, aplausos e sobretudo críticas acerbadas.
É admirável que tanta gente possa versar sobre matérias tão delicadas quanto direito administrativo, penal ou mesmo constitucional. Mais admirável ainda é supor que cada comentarista tenha o mínimo de conhecimento técnico para fundamentar suas posições, expressas em termos radicais nas redes sociais ou mesmo na mídia.
Mas vejamos o lado bom. Por muito tempo, tempo demais, o Supremo Tribunal Federal fez suas reuniões senão na indiferença, ao menos na discrição de uma instância hermética, com palavreado destinado a ser entendido pelos iniciados. No âmbito penal, é a ação 470 que fez a população se interessar a estes senhores da capa-preta. O Mensalão foi o primeiro passo para o Plenário e seus componentes cair na boca do povo. Sob a presidência de Joaquim Barbosa, o “julgamento do século” foi recorde de audiência, as transmissões ao vivo ocupavam as tardes das redações, mas também dos cabeleireiros e até dos barzinhos. As decisões do STF viraram assunto popular. Mexeram com um, mexeram com todos.
A Corte Suprema teve que passar a conviver com um público não acostumado às linhas e entrelinhas dos códigos, às divergências e aos fumus boni iuris. Único Poder a não tirar sua legitimidade do sufrágio universal (o que não o torna menos legítimo), o Judiciário foi submetido ao mesmo controle social que os dois outros. Enquanto parte das redes sociais fazia de Joaquim Barbosa um herói, outra vasculhava sua vida profissional e particular.
Quando não se encontra outro argumento, desqualificar o adversário é tática que funciona sempre. Desde o julgamento do Mensalão, ativistas têm passado seu tempo fuçando o patrimônio, os familiares ou as amizades dos ministros dos tribunais superiores. E uma foto com um ex-candidato à Presidência, um apartamento em Miami ou uma sociedade num curso de direito vira tara que explicaria um voto numa ou noutra ação.
A Constituição brasileira reservou à Suprema Corte um papel de extrema relevância. Enquanto em boa parte dos países sua competência se concentra no controle constitucional de leis e decretos, aqui ela pode interferir diretamente em casos particulares, interpretando e, para seus detratores, até extrapolando a vontade do Legislador. A Constituinte de 1988 produziu um texto detalhadíssimo, oscilando entre grandes princípios e demagogias, garantias e corporativismos. Se juntar todos os outros códigos e todas as outras leis, a soma forma um emaranhado sobre o qual os 11 excelentíssimos têm grande poder de “arrumação”.
E como já dizia Voltaire, com grandes poderes vêm grandes responsabilidades. Chamando para se o direito de mostrar um viés, o STF exacerbou também as rivalidades internas. Os embates duros entre ministros já não são restritos aos gabinetes e explodem nas retransmissões ao vivo. E para chegar à “mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”, o caminho foi pontuado de trocas e apartes cada vez mais incisivos. Essas manifestações explícitas de desprezo perturbam a mensagem que a Suprema Corte há de passar, e que precisa ser muito clara e repetida: a sociedade não pode mais tolerar a impunidade.
Não se trata exatamente de combate à corrupção, mas sim de luta contra a impunidade. O flagelo das propinas, dos desvios, dos jabás não é exclusivo de partido, de campo ideológico nem de pais. A apropriação de dinheiro público é uma doença oportunista, que aparece em qualquer lugar quando os agentes que a praticam avaliam ter uma boa chance de sair ilesos da manobra. É a tolerância à corrupção por parte do Judiciário que é responsável pelas metástases deste câncer na sociedade. O “rouba mas faz”, o “em Brasília todos roubam mesmo”, o “os outros roubaram mais”, o “existe desde que os portugueses chegaram aqui”, o “pode ser mas é meu amigo”, o “não tem provas”, todos são argumentos em prol da aceitação social do “por fora”, do “faz rir”, da “cervejinha”.
Empoderados com o direito de nortear todo o sistema jurídico brasileiro, cada ministro do STF precisa sentir o peso de sua responsabilidade. Tanto o Executivo quanto o Legislativo têm, a cada quatro anos, um encontro decisivo com o eleitor, que pode plebiscitar carinhosamente ou demitir sumariamente. Suas excelências supremas são poupadas deste exercício também para poder adquirir um nível mais elevado de independência. E de responsabilidade. Esconder-se atrás de obscuro artigo de lei, ou negar conhecer as consequências práticas de decisão tomada não condiz com esta responsabilidade. Belas declarações também não. Durante a apertada votação sobre a competência originária dos crimes penais conexos ao ilícito eleitoral de “caixa 2”, variantes da frase “é claro que todos nós somos contra a corrupção, mas…” apareceram com frequência nas falas de ministros, advogados, Procuradora…
Como diz Jon Snow em Game of Thrones, tudo que está antes da palavra “mas” é besteira. E, mais uma vez, o problema do Brasil nunca foi corrupção. É (queríamos que fosse “foi”) impunidade. Que isto seja lembrado por Suas Excelências no próximo dia 10 de abril, quando o assunto será início de execução da pena após confirmação da sentença em segundo grau.