A defesa do Supremo Tribunal Federal equivale à defesa da democracia. Na Venezuela, a Suprema Corte tornou-se serviçal do presidente Nicolás Maduro, porque o país está sob o simulacro de uma ditadura. No Brasil, as críticas excessivas ao STF em geral são produzidas por pessoas que, falando em nome de uma moral suspeita, raramente professam o credo democrático. O escrivão da Polícia Civil de Goiás Omar Rocha Fagundes escreveu numa rede social: “O nosso STF é bolivariano, todos alinhados com os narcotraficantes e corruptos do país. Vai ser a fórceps”. Noutro post, acrescentou: “O Peru fechou a corte suprema do país. Nós também podemos. Pressão total contra o STF”.
Preocupando-se com o acessório e não com a essência, uma reportagem simplória do jornal “O Popular” frisa que a mensagem obteve apenas “sete curtidas” — deixando de perceber que o texto é de uma gravidade perigosa e, mesmo, que sete curtidas não significam que apenas sete pessoas leram e viram a publicação.
As postagens são falsas, exageradas e, vá lá, de uma tolice rematada. Primeiro, o STF brasileiro não é bolivariano. Segundo, não há notícia de sequer um ministro alinhado com narcotraficantes. Terceiro, não há prova cabal de que algum dos magistrados seja corrupto, por isso é preciso ter mais cuidado com impressões e juízos de valor formulados por uma mistura de ira, ressentimento e má qualidade das informações armazenadas no cérebro (ou puramente nos dedos). Quarto, embora não tenha força política para fechar coisa alguma, o policial está claramente defendendo o fechamento do STF, quer dizer, a implantação de uma ditadura, pois democracias não cerram as portas do Judiciário.
Paulo Chagas, general da reserva e político, faz discursos contundentes contra o Supremo Tribunal Federal | Foto: Reprodução
O general Paulo Chagas, quiçá saudoso da ditadura — o presidente Ernesto Geisel começou sua liquidação porque, nas suas palavras, “era uma bagunça”, inclusive havia corrupção —, postulou, sublinha o ministro Alexandre Moraes, “a criação de um Tribunal de Exceção para julgamentos dos ministros do STF ou mesmo substitui-los”. Na reserva, o militar não tem energia suficiente para fazer o que sugere — praticamente a adoção de uma ditadura. Como apoiou Jair Bolsonaro, o presidente da República, o militar deveria estar satisfeito com a nova situação do Brasil. Porque, a rigor, entre os problemas centrais do país, apesar de uma histeria quase coletiva — que busca uma inflação de Judas para malhar —, não está o Supremo e seus ministros. Por certo, há problemas, mas de menor magnitude do que sustentam usuários de redes sociais, que, açulados por manipulações habilmente articuladas, acreditam que o STF realmente barra as condenações por corrupção no Brasil. Há políticos espertos pegando “carona” nas críticas à Suprema Corte para se cacifarem para pleitos futuros, por isso, num irracionalismo planejado, não se importam em contribuir para a demolição de uma instituição seminal para a estabilidade democrática.
Apesar de contestada por Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge (goiana de Morrinhos) é precisa: “O sistema penal acusatório estabelece a instransponível separação de funções na persecução: um órgão acusa, outro defende e outro julga. Não admite que o órgão que julgue seja o mesmo que investigue e acuse”. Dias Toffoli, comportando-se como uma espécie de Deus tropical, contrapôs: “Hoje sou presidente da Corte, querem atingir o STF, por isso temos de ter defesa, não podemos deixar o ódio entrar na nossa sociedade”. Curiosamente, seus antigos aliados do PT foram responsáveis pela adoção ou expansão, ao menos em parte, do “discurso do ódio” no Brasil ao postular a aberração do “nós contra eles”.
Alexandre de Moraes, ministro do Supremo Tribunal Federal | Foto: Pedro França/Agência Senado
Dias Toffoli faz uma denúncia grave que merece apuração responsável: “A destruição das instituições e de reputações faz parte de uma campanha do ódio. Temos que saber se não há interesses internacionais por trás disso, de desestabilizar as instituições. Interesses nada republicanos”. O presidente deveria participar de uma cruzada para que se possa saber quais são tais “interesses internacionais”.
Pulmão da democracia
Se o Supremo não é nenhuma praga do Egito, há ministros que parecem não perceber que precisam ter o máximo de compostura. Ao optarem pela censura à revista digital “Crusoé”, os ministros José Antônio Dias Toffoli e Alexandre de Moraes cometeram um erro grave e, para o desconforto de outros ministros, como Celso de Mello e Marco Aurélio Mello, ainda tentaram justificar um ato de exceção por uma instituição que tem o dever de combater atos de exceção. A impressão que restou cristalizada é que Dias Toffoli, presidente do STF, usou o Supremo em benefício próprio para se blindar. Pode não ter sido isto, porque, de fato, os ministros devem ser protegidos dos excessos de indivíduos que cobram cidadania, mas não se comportam como cidadãos.
Raquel Dodge, procuradora-Geral da República: o Supremo não pode tudo | Foto: Marcos Corrêa/PR
A “Crusoé” fez jornalismo, furando as demais publicações — como a “Veja”, que parece mareada depois da recuperação judicial do Grupo Abril, que acaba de ser vendido para um advogado que certamente entende de muitas coisas, menos de jornalismo —, ao relatar que há um “documento”, enviado por Marcelo Odebrecht (o novo Justiceiro da praça) à Operação Lava Jato, no qual se sugere que era preciso falar com o amigo (Dias Toffoli) do amigo (Lula da Silva, então presidente da República) do pai (Emilio Odebrecht). Em 2007, Dias Toffoli era advogado-geral da União e discutia-se a construção de hidrelétricas. A Odebrecht queria tudo e, aparentemente, julgava-se proprietária do governo e, quiçá, do Brasil.
O advogado não estava na folha de pagamentos da Odebrecht, que, se conseguiu muitas coisas, não obteve tudo. A “Crusoé” em nenhum momento publicou que Dias Toffoli era ou é “corrupto” e que esteve a serviço da construtora. Mencionou uma informação que está documentada e que, por si, não incrimina o ministro. É provável, até, que Marcelo Odebrecht esteja liberando material para “queimar” possíveis desafetos do passado (que se “recusa” a ser passado) e manchar a reputação dos ministros do Supremo — que, certamente, não o tratam como o “príncipe” das empreiteiras do Brasil, Cuba e África.
Marco Aurélio Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal, não hesitou e criticou duramente censura à Crusoé | Foto: Carlos Humberto/SCO/STF
Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, este na tentativa de proteger aquele, excederam e saíram chamuscados com a rápida e dura reação da sociedade. Nem ministros do Supremo apoiaram a decisão da dupla de censurar a “Crusoé”, cometendo o erro de transformar a revista em “vítima”. Quer dizer, a publicação dirigida por Mario Sabino e Rodrigo Rangel ficou mais forte ao beber na fonte da fraqueza de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes. Tornou-se conhecida, de um dia para o outro, graças à publicidade gratuita na TV Globo, na “Folha de S. Paulo”, em “O Globo”, no “Estadão”, entre outros, que publicaram editoriais candentes em defesa da liberdade de imprensa.
Ao perceber que haviam, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, se tornado um exército de apenas dois homens — guerreando contra 209 milhões de brasileiros —, a dupla recuou. Alexandre de Moraes retirou a censura sobre a revista. Censura que merece o qualificativo até de ingênua, porque a informação circulou em praticamente todos os jornais, blogs, emissoras de televisão e rádio de todo o país. Ingênua também porque a reportagem de “Crusoé” não desqualifica Dias Toffoli. Ingênua, por fim, porque mostrou dois ministros que, ao pesarem a mão em defesa do interesse particular, ficaram com imagem negativa nos quatro cantos do Brasil.
Celso de Mello, ministro do Supremo Tribunal Federal: “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática” | Foto: Reprodução
Pela voz de Marco Aurélio Mello e Celso de Mello — dois dos ministros mais preparados —, o Supremo, que vai além de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, deu provas de que segue no jogo democrático e não aceita o pessoal postar-se acima da lei. Marco Aurélio Mello deu declarações enfáticas, sem se preocupar com o espírito de corpo típico das instituições brasileiras: “Isso, pra mim, é inconcebível [a remoção do conteúdo dos sites jornalísticos]. Prevalece a liberdade de expressão, para mim é censura. Mordaça. Isso não se coaduna com os ares democráticos da Constituição de 1988. Não temos saudade do regime pretérito [a ditadura civil-militar]. E não me lembro nem no regime pretérito, que foi regime de exceção, de medidas assim, tão virulentas como foi essa”.
As palavras sensatas e qualificadas de Celso de Mello merecem ser transcritas na íntegra, para mostrar que o Supremo é mais do que Dias Toffoli e Alexandre de Moraes: “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República.
Ernesto Geisel: o general-presidente, que pôs fim à censura à imprensa, disse que acabou com a ditadura porque “era uma bagunça”
“O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República.
“A prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República.
“No Estado de Direito, construído sob a égide dos princípios que informam e estruturam a democracia constitucional, não há lugar possível para o exercício do poder estatal de veto, de interdição ou de censura ao pensamento, à circulação de ideias, à transmissão de informações e ao livre desempenho da atividade jornalística.
Jair Bolsonaro, o presidente da República, que é crítico da imprensa, defendeu a liberdade de expressão | Foto: Reprodução
“Eventuais abusos da liberdade de expressão poderão constituir objeto de responsabilização ‘a posteriori’, sempre, porém, no âmbito de processos judiciais regularmente instaurados nos quais fique assegurada ao jornalista ou ao órgão de imprensa a prerrogativa de exercer de modo pleno, sem restrições, o direito de defesa, observados os princípios do contraditório e da garantia do devido processo legal.”
O presidente da República, Jair Bolsonaro, e o vice-presidente, o general Hamilton Mourão, ao criticarem a ação de Dias Toffoli e Alexandre de Moraes, defenderam a democracia e a liberdade de imprensa (aliás, muito criticada, às vezes de maneira tosca e antidemocrática, por Jair Bolsonaro). Mas, afinal, quem, neste momento, não quer arrancar uma “casquinha” do Supremo?
O Supremo é, em suma, o pulmão da democracia e, por isso, não pode se comportar como se fosse um agente da ditadura na democracia. Mas o STF não é a “Geni” que esquerda e direita amam odiar. Entretanto, quem ousa lutar contra histerias coletivas? Mas vale, leitor, refletir sobre o que anda dizendo sobre as instituições que dão sustentáculo à sociedade aberta e democrática. Exija provas substanciais antes de avaliar, de maneira peremptória, indivíduos e instituições. Não se fie em pregações que, às vezes longe de propagar a verdade, são meras criações políticas e ideológicas e partes do brutal jogo de poder. Não ceda sua cabeça para a “pilha” dos outros.