Aprisionado no silêncio quase constante que lhe impunha sua condição de criança autista, o menino Rhuan, de apenas nove anos, tornou-se a razão e o objeto do ódio de um casal de mulheres, Rosana e Kacyla.
O menino foi emasculado. Submetido a humilhações e torturas. Até o dia em que sentiu suas costas invadidas pelo aço frio de uma série de facadas. Ainda vivo, viu sua garganta ser cortada até sua cabeça ser totalmente separada do resto do corpo. Arrancaram a pele de seu rosto, como se fosse uma máscara. Desmembrado, foi acondicionado em duas mochilas cor de rosa.
Não é uma tarefa simples compreender por que Rosana e Kacyla cometeram sorte tão grande de barbaridades.
No distorcido e apavorante universo das mentes de Rosana e Kacyla, misturou-se ódio religioso, questões de gênero, violência cometida por e contra elas.
Esta é a história de como de certa forma Rosana e Kacyla foram igualmente desmembradas das suas características humanas para se tornarem frias assassinas.
De hoje até sexta-feira, série especial publicada de forma simultânea na versão impressa e eletrônica do Jornal de Brasília contará a trágica história do menino Rhuan e dos demais personagens desse drama brasileiro. No primeiro episódio da série, a impressionante transformação de Rosana. De como a mulher e mãe amorosa e preocupada transformou-se na assassina de seu próprio filho.
Esta reportagem é decidada à inocência… Que em algum lugar se encontra perdida, ansiando por ser resgatada.
Olavo David Neto. Enviado especial a Rio Branco (AC)
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“Deus, muito obrigada pelo presente que me tem concedido. É uma benção na minha vida. É um grande tesouro que não tem preço, é jóia rara que ilumina a minha vida todos os dias! […] Eu só tenho a agradecer, Senhor, pelo teu amor na vida do meu filho. Te amo, meu amor Rhuan.”
Cinco anos e cinco meses separam a declaração de amor de Rosana ao filho Rhuan, do assassinato macabro do menino, que foi emasculado, esfaqueado, esquartejado, decapitado e teve a pele do rosto arrancada no dia 31 de maio deste ano, em Samambaia.
Nascida em 25 de agosto de 1991, primogênita de seis irmãos, Rosana teve o carinho e a atenção que os outros filhos de Maria Antônia da Silva Candido não tiveram. Cresceu recatada, gostava de brincar sozinha com as bonecas, dentro da casa da família no bairro da Cadeia Velha, às margens do Rio Acre. “Nunca foi de rua”, comenta a mãe. “Desde pequena, ia pra igreja”. A fé e as brincadeiras solitárias dividiam espaço com os estudos.
Abandono e abuso
Do pai, Jair Ferreira, Rosana nada teve. Nem carinho, nem registro na certidão de nascimento. Vazio paterno. Apenas pouco antes de fechar a primeira década de idade, ela soube quem era seu progenitor. Com nove anos, passou a frequentar a casa que lhe fora negada, mas o convívio tardio com o pai foi conturbado. “Ela foi ficando chateada, até o ponto de ela esquecer que tinha pai”, lamenta Maria Antônia. Aos 13 anos, cessaram-se as tentativas junto a um homem que não lhe demonstrava amor.
A figura do pai, então, foi substituída pela do padrasto, o Leco, que a via mais como mulher que enteada. Samara, irmã de Rosana, relata que o então marido da mãe tentou abusar dela. “Realmente, ele vinha com ‘inxirimento’ pra cima da gente quando tava bêbado”, relembra Samara.
Aos 16 anos, começou a namorar Maycon Douglas, com quem teria Rhuan. “A gente começou a ficar, coisa de adolescente. Nosso relacionamento era ótimo, era bem intenso”, recorda o rapaz acreano.
“Ela era louca pelo Rhuan”, comenta Maria do Socorro, avó paterna do menino. “Tanto que ele mamou até os três anos, e ela nunca fez questão de tirar. Era um apego grande com aquele menino”, diz a senhora, lutando sem sucesso para conter as lágrimas.
A incredulidade é um sentimento em comum entre todos que conheciam Rosana naquela época. Liberdade Nascimento, amiga da igreja, morou por um mês com Rosana, quando ela já havia saído da casa de Maycon e passou a dividir o teto com Kacyla, que viria a se tornar sua companheira e cúmplice no assassinato de Rhuan. “Ela era muito carinhosa com o Rhuan” relembra Liberdade, dizendo ainda não acreditar na morte do menino.
“Mas a Kacyla começou a dizer para a Rosana que ela tinha que amar menos o Rhuan, que não podia ter muito apego senão Deus ia tirar o filho dela.”
Liberdade recorda, ainda, que Rhuan tinha medo da companheira da mãe, principalmente nos momentos em que ela ia dar-lhe banho.
“Ela dava banho frio no menino às seis horas da manhã e ainda pedia a ele que a chamasse de mãe.”
Começa aí uma trajetória sem volta. Tem início o lento assassinato de Rhuan que seria consumado no dia 31 de maio de 2019.
Kacyla sugeriu que Rosana passasse por uma purificação religiosa. A transformação se tornava cada vez mais irreversível. Após o tratamento proposto por Kacyla, Rosana se tornou cada vez mais fanática e cada vez mais distante da figura materna que escrevia declarações de amor ao pequeno filho no Facebook.