12/06/2020 às 07h56min - Atualizada em 12/06/2020 às 07h56min

O que está por trás do medo dos governadores em relação ao controle das polícias

Eduardo Matos de Alencar
Brasil Sem Medo

Conforme a crise política, social, econômica e institucional vai se agravando, os olhos da opinião pública vão se voltando para as forças de segurança pública estaduais. Trabalhando sob pressão, polícias e guardas municipais se viram colocados na posição de exercer coerção contra cidadãos comuns que, por quaisquer razões, desobedeciam às regras de isolamento social adotadas por estados e municípios.

Diferentemente da maior parte dos países do mundo, o Brasil se viu neste primeiro semestre imerso numa crise de saúde pública que se misturava indissociavelmente com graves problemas políticos e institucionais.

A cronologia da queda de braço entre o Presidente e os governadores e prefeitos, com uma mediação desastrosa do STF, precisa ser revisitada para entender em que ponto estamos no atual momento.


Receituário do caos

No dia 20 de março, em resposta a uma ação perpetrada pelo PDT, o ministro Marco Aurélio Mello, do Superior Tribunal Federal (STF) decidiu que estados e municípios têm poderes para restringir a locomoção de pessoas, o que incluía medidas sobre quarentena, isolamento e restrição de locomoção por rodovias, portos e aeroportos.

A decisão se fundamentou no artigo 23, inciso II, da Carta Magna, onde se afirma que é “competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (...) cuidar da saúde e da assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência”. Em seguida, cita-se um artigo de “competência concorrente” na Constituição, qual seja, o 24, que enumera uma série de áreas nas quais estados e municípios poderiam legislar. Ou seja, no entender do ministro, nos casos de competência legislativa concorrente, a competência administrativa seria comum.

Em termos mundanos, tratou-se de ativismo judicial grosseiro, do tipo que inverte sentidos em nome de uma postura francamente salvacionista. Entendendo que o Presidente não parecia disposto a adotar o receituário da Organização Mundial da Saúde (OMS), o STF mais uma vez invadiu competências e provocou uma pane constitucional, que abriu espaço para a violação de vários direitos fundamentais.

É importante ter em mente que a Constituição define dispositivos de exceção que violam excepcionalmente alguns direitos fundamentais dos cidadãos, em casos limítrofes. O mais extremo de todos é o chamado Estado de Sítio, previsto no Artigo 137, que prevê a possibilidade de a União instituir “obrigação de permanência em localidade determinada”, clara restrição do direito de ir e vir.

Ressalte-se que o dispositivo foi pensado como caso limítrofe, que exigiria, antes, o esgotamento das medidas restritivas do Estado de Defesa, ambos tendo de ser aprovados pelo Congresso Nacional. O gradualismo da medida, assim como sua temporalidade limitada, foi concebido pelo Legislador como um freio para o aumento descontrolado do poder dos governantes. O fato do poder de exceção se concentrar na União, por outro lado, é uma garantia de eficiência e de maior controle da autoridade, que se condensa num só ente federado.

Pitadinha de pimenta

A decisão do ministro, em seguida homologada pelo plenário da Corte, transferiu esse poder de exceção de maneira desordenada para 5.560 prefeitos e 27 governadores brasileiros. Ironicamente, esse ativismo judicial exacerbado fez valer seu poder num momento em que a opinião pública rasgava as vestes em resposta a ilações na imprensa de que o Governo Federal cogitava solicitar a decretação do Estado de Defesa.

O que se viu foi um cenário de absoluta desordem, em que governantes informados por pessoal de qualidade técnica duvidosa definiam medidas restritivas com base em segredos arcanos inalcançáveis para a maior parte dos mortais. Alguns estados chegaram ao cúmulo de impor medidas de “lockdown”, com proibições de circulação não autorizada de cidadãos, que podiam ser levados para a delegacia e enquadrados em crimes do Código Penal caso não obedecessem aos decretos estaduais. Várias cidades instituíram toques de recolher, em medidas extremas descabidas, considerando que sequer tomaram providências básicas de distanciamento social antes disso, como a instalação de tapumes em praças ou a regulação da circulação em mercados públicos.

Enquanto as decisões pareciam esteadas na autoridade da OMS, que até ali já tinha demonstrado sobejamente sua aptidão para o erro na gestão da crise, a coisa não parecia tão escandalosa. Porém, quando essas mesmas autoridades caíram na farsa do artigo da Lancet, incapazes de verificar erros metodológicos grosseiros, ficou claro que inépcia e má fé não são privilégio de cursos de ciências humanas no Brasil. A desmoralização progressiva das políticas de contenção adotadas no país já é uma realidade que ninguém mais consegue esconder.

 

Cozimento em fogo alto

Do ponto de vista das forças de segurança, é preciso ter em mente que isso afeta diretamente a moral dos policiais.  Desde o seu início, a pressão para o cumprimento de ordens arbitrárias não tem sido bem recebida por todos os agentes na ponta do sistema. As corporações têm canais próprios de comunicação interna e nem sempre ordens serão cumpridas de maneira rígida, conforme o regulamento disciplinar. O sistema de segurança pública é, por natureza, frouxamente articulado, e, muitas vezes, quanto mais se espera que ele responda a um estímulo desde cima, menos resultado se verifica na outra ponta.

Existe nessa resistência um componente institucional e outro de natureza moral e política. Do ponto de vista institucional, profissionais que vejam seu escopo de atuação ampliado subitamente para um universo de comportamentos agora considerados delitivos simplesmente tendem a abandonar qualquer pretensão de profissionalismo em face da impossibilidade humana de cumprimento da Lei.

As polícias brasileiras já operam no máximo de sua capacidade, lidando com uma quantidade de crimes bem maior do que seu potencial material de atuação. Então, imagine ter quer passar a atuar da noite para o dia como agente da regulação absoluta da circulação de pessoas, do direito de ir e vir, para uma população tradicionalmente pouco afeita ao controle como a brasileira? Inevitavelmente, a expansão exagerada do controle fomenta o abuso, a extorsão ou o relaxamento, a depender do caráter dos agentes envolvidos.

Por outro lado, há um componente de resistência silenciosa, motivado por uma avaliação política do cenário que qualquer policial na ponta é capaz de fazer por si mesmo. Apesar dos casos de abuso de autoridade terem se acumulado nos últimos meses, com milhares de denúncias nos canais oficiais e nas redes sociais, já se verifica certa insatisfação na categoria, especialmente entre os policiais militares, com a necessidade de cumprir ordens arbitrárias contra cidadãos comuns, principalmente em face da desmoralização constante das autoridades em lidar com a pandemia. É bem provável que o fracasso dos estados que adotaram medidas de lockdowns para alcançar metas de distanciamento social em torno de 70% deva-se a essa resistência silenciosa de vários policiais.

 

Passando do ponto

A situação de estresse é tão evidente que parte da imprensa já fala da preocupação de governantes com o avanço do “bolsonarismo” nas polícias. Em muitos estados já se verifica preocupação ativa em coibir manifestações de insatisfação de policiais militares e agentes das polícias civis nas redes sociais, como forma de evitar o início de movimentos organizados, que possam desaguar em atos de franca rebeldia, como os vistos no Ceará no início deste ano.

Com o advento das manifestações de esquerda nas últimas semanas, disfarçadas sob a alcunha de “antifa”, a tensão nas corporações tem entrado em ponto máximo de ebulição. Isso ficou evidente quando da atuação de um segmento da Gaviões da Fiel em São Paulo no final de semana retrasado, que rapidamente partiu para a agressão contra os apoiadores do Presidente, utilizando de rojões, pedras e facas para agredir agentes da Lei na Avenida Paulista e imediações. Na medida em que a imprensa retratava a torcida, constantemente investigada pelas forças de segurança paulistas por suas ligações com o Primeiro Comando da Capital (PCC), como defensores da democracia e guerreiros da justiça contra o racismo, ficava evidente a contradição do discurso dominante na grande mídia sobre o tratamento das multidões. Nos grandes veículos de comunicação, nenhuma palavra foi dita sobre a irresponsabilidade dos manifestantes em relação à saúde pública, como rezou a pauta na imprensa nacional em relação aos protestos bolsonaristas das semanas anteriores. De repente, aglomerações não eram mais moralmente condenáveis e os policiais eram obrigados a se expor a multidões que só foram dispersadas quando se usaram da violência explícita.

No domingo passado, as operações de contenção para evitar conflitos entre os grupos contrários e favoráveis ao Presidente foram coroadas por mais uma afronta aos policiais que operam na ponta e à sociedade brasileira como um todo. Em entrevista à Jovem Pan ao final do dia de atos espalhados pelo país, o Secretário Executivo da Polícia Militar de São Paulo, o Coronel Álvaro Camilo, classificou o evento como “manifestação bonita, pacífica, onde se garantiu a liberdade de expressão e a proteção das pessoas”. Complementando, explicou que a ação repressiva da polícia teria visado “um grupo de vândalos” que queria levar desordem para cidade.

Para além da reprodução do discurso que dominou o entusiasmo midiático nos protestos de 2013 (maioria pacífica x minoria de vândalos), numa clara tentativa artificial de recriar o ambiente das Jornadas de Junho, as declarações do coronel certamente calaram fundos nos policiais da ponta, sujeitos, como quaisquer cidadãos comuns, ao fluxo intenso de filmagens que tem circulado nas redes sociais retratando a desordem dominante nos Estados Unidos, modelo evidente para a atuação desses grupos no país.

O atabalhoamento político na ânsia de fomentar uma oposição nas ruas ao governo Bolsonaro tem comprometido a legitimidade de muitos governantes e de parcela considerável da grande mídia para a população como um todo. No caso das polícias, isso abala diretamente a moral da tropa e fomenta a insatisfação. É possível que essa panela de pressão encontre na atuação política uma válvula de escape muito em breve. As eleições municipais são terreno fértil para o surgimento de novas lideranças, que vão cobrar a sua paga do provincianismo e autoritarismo em muitas cidades. Quando isso acontecer, a imprensa e os analistas vão procurar os bodes expiatórios de sempre. Mas de quem é a culpa, afinal?

— Eduardo Matos de Alencar é escritor, sociólogo e analista político. Autor do livro “De quem é o comando? — O desafio de governar uma prisão no Brasil.”


 


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