Inserida no planejamento de governo do presidente Juscelino Kubitschek, na campanha dos “50 anos em 5”, a criação da BR-010, que liga o Distrito Federal ao Pará, representa mais do que desenvolvimento em infraestrutura. Para municípios localizados às margens da rodovia, a pista é sinônimo de entrada de turismo e novas fontes de renda.
Não à toa, moradores de Cavalcante (GO) receberam com indignação o anúncio de que o novo traçado da via, inicialmente planejado para passar pelo município, será desviado para a cidade vizinha, Monte Alegre (GO). Com extensão de quase 2 mil quilômetros, o desenho da rodovia ainda prevê a construção de novos trechos em outros municípios, além dos já contemplados pela pista.
Há quase 60 anos, os moradores de Cavalcante aguardavam pela instalação da estrada no local. A região, com um dos índices de desenvolvimento humano mais baixos do país (0,584, em número que vai de 0 a 1), é lar de populosas comunidades kalungas – descendentes de africanos escravizados fugidos e libertos de minas de ouro da região central do país.
A expectativa era de que a construção do trecho asfaltado trouxesse investimento para uma cidade que, agora, teme o abandono.
Ao Metrópoles, a kalunga Dominga Natália Moreira dos Santos, 32 anos, defendeu que a rodovia permitiria o crescimento econômico e social da região.
“Se o intuito do Estado fosse o desenvolvimento da região, o combinado seria cumprido. Estamos insatisfeitos com essa mudança, não fomos comunicados. Ao que parece, o objetivo é não beneficiar o quilombo, pois, se é para desenvolver uma região, precisariam procurar beneficiar o maior número de pessoas”, explica.
Dominga acredita que a BR-010 é “o primeiro eixo para o desenvolvimento” da cidade rasgada, majoritariamente, por estradas de terra. “Sem acessibilidade, é impossível o desenvolvimento. Beneficiaria as pessoas até com recursos, desenvolvimento de modo geral. Se não tem estrada, não tem como avançar nos outros critérios”.
“O povo kalunga está há mais de 300 anos vendo as pessoas vindo aqui tirar recursos e deixando apenas a ‘caveira’ do nosso território. Não há projeto de desenvolvimento para nosso povo, que é atrasado por faltas de políticas públicas. Somos humanos, fazemos parte da sociedade, mas parece que o projeto é nos excluir do restante”, desabafou.
A vice-presidente da associação que representa os interesses dos kalungas crê que o asfalto passando por Cavalcante implicaria em melhorias para oito mil quilombolas, que temem o abandono.
“Sabemos da necessidade de todos os quilombos, das dificuldades das comunidades. Estamos falando de pessoas que vivem em pleno abandono. Sempre foi esquecido e vai continuar assim. Estamos sendo ignorados”.
A fala de Dominga encontra ressonância entre outros kalungas da região. João Moreira de Oliveira discorda da mudança promovida pelo Departamento Nacional de Infraestrutura e Transportes (Dnit).
“O impacto social e econômico da manutenção do traçado original seria muito maior do que ocorrerá em Monte Alegre. Monte Alegre é uma região mais desenvolvida, com mais ruas asfaltadas. Por isso, creio que não vai significar desenvolvimento muito grande”, pontua.
Oliveira afirma que os moradores de Cavalcante estão se mobilizando para tentar contornar a decisão do Dnit. “Nosso quilombo é resistência, vamos continuar resistindo. A gente não vai desistir. É uma perda muito grande, porque serão quase 20 mil pessoas que vão deixar de ser beneficiadas com a presença da rodovia”, defende.
Para o comerciante Jurani Francisco Maia, 54, o novo traçado representa uma derrota para os moradores do município, que viviam a expectativa da chegada na BR-010. “Imensurável, é uma expectativa que não é só grande, como antiga. Falamos de algo que está no papel desde a criação de Brasília. Seria a garantia de algo que nós queremos há muito tempo.”
“Cavalcante começou a experimentar um pouco da movimentação turística por agora, graças à Chapada dos Veadeiros. Nem todos que são de fora daqui entendem que isso é um objetivo de uma comunidade, um sonho nosso”.
Maia defende que o crescimento do turismo no município seria ainda maior se a cidade tivesse infraestrutura adequada para receber os visitantes. “Nosso município é muito rico, mas não temos estrutura. Estamos à margem, a nossa expectativa é de que melhorasse nossa qualidade de vida, seria uma abertura de portas, uma nova página.”
“O turismo cresce, mas a infraestrutura da cidade não acompanha. As pessoas chegam aqui e se surpreendem com a falta de estrutura da cidade. Tenho medo de que Cavalcante vire uma cidade fantasma”, finalizou, ecoando avaliações de vários moradores ouvidos pela reportagem.
Em nota enviada à reportagem, o Departamento Nacional de Infraestrutura e Trânsito (Dnit) justificou que a mudança no percurso é resultado de estudos realizados pela área técnica do órgão.
Segundo o Dnit, a escolha por Monte Alegre representa uma alternativa por uma região com grande parte do trecho pavimentado, exigindo menor intervenção que Cavalcante.
Além disso, a instalação da rodovia na primeira cidade implicaria em menor intervenção nas áreas de preservação permanente, “devido à quantidade menor de corpos hídricos identificados”. “Monte Alegre apresenta um relevo mais favorável, o que redundará em menores volumes de terraplenagem e melhores características técnicas em planta e perfil”, defendeu.
“Portanto, após os dados levantados e analisados, a recomendação técnica da melhor opção de traçado seria a Alternativa 1 [Monte Alegre], pois representaria um desempenho operacional satisfatório após a conclusão dos melhoramentos previstos. Diante dos resultados da análise econômica, a alternativa que se demonstrou mais viável, conforme premissas do Estudo de Viabilidade Técnica, Econômica e Ambiental (EVTEA), foi a Alternativa 1”, completou.
A reportagem procurou a Prefeitura de Cavalcante (GO) para comentar a mudança do traçado da rodovia e aguarda retorno. O espaço está aberto para manifestações.