A tensão do governo de Jair Bolsonaro com a cúpula das Forças Armadas, que pediu demissão na terça-feira (30/3) e foi substituída no dia seguinte, pode forçar uma recalibragem no discurso da máquina de propaganda bolsonarista.
Essa é uma das avaliações do pesquisador Pablo Ortellado, professor do curso de gestão de políticas públicas da USP e pesquisador do Monitor do Debate Político no Meio Digital, da mesma universidade, que analisa como os temas da política nacional são difundidos e comentados na internet.
Essa máquina de propaganda nas redes sociais é um importante pilar de sustentação da popularidade do governo - e frequentemente se apoia na exaltação aos militares para instigar os simpatizantes do presidente.
"Os militares são essa força que vem de fora do jogo político e que (no imaginário bolsonarista) poderia resolver as coisas, mas agora (no episódio de terça-feira) a liderança militar marcou uma separação" com o governo ao entregar seus cargos, analisa Ortellado.
O poder militar sempre fez parte do imaginário coletivo dos apoiadores do presidente, que não raro defenderam golpes militares no país em contraposição ao Congresso e ao Judiciário. Como então conciliar, dentro do discurso bolsonarista, as rusgas com esse grupo?
"Isso é curioso. Dentro da ideia de 'somos o povo e temos de derrotar a elite', a esperança da retórica bolsonarista dependia muito dos militares", explica Pablo Ortellado à BBC News Brasil.
"Isso inclusive precede o próprio Bolsonaro - é algo que apareceu, por exemplo, na greve dos caminhoneiros (em 2018), quando teve muito o expediente de fazer manifestação na porta de quartéis no interior do Brasil pedindo intervenção militar. Nem era uma coisa de direita, mas tinha uma espécie de crença na impotência da vontade popular e que ela precisava de um poder que liderasse e expressasse esse anseio popular."
Sendo assim, a aparente cisão com ao menos parte dos militares "abala muito o discurso populista, porque é neles que reside a esperança", prossegue Ortellado.
Sobre a crise que eclodiu na terça-feira, informações de bastidores sugerem que haveria uma insatisfação mútua: de um lado, Bolsonaro queria demonstrações mais explícitas da cúpula militar contra medidas de restrição que vêm sendo implementadas pelos Estados contra a covid-19; de outro, a liderança militar estaria insatisfeita com a condução do governo federal no combate à pandemia.
Na terça-feira, a surpresa da demissão do ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, foi seguida pela entrega de cargos, em conjunto, dos líderes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica - algo inédito neste período da redemocratização do Brasil.
Ortellado e sua equipe estão agora analisando como os eventos desses dois dias estão sendo interpretados dentro de grupos de WhatsApp e contas de YouTube bolsonaristas, redes sociais onde esse grupo tem mais expressividade. Por enquanto, diz ele, reina uma certa "indefinição" na apresentação do episódio aos simpatizantes do presidente.
Uma possibilidade é que se repita o que aconteceu com o ex-ministro Sergio Moro, quando este rompeu com o governo acusando Bolsonaro de tentar interferir na Polícia Federal.
Rapidamente, os grupos de apoio ao governo nas redes sociais pintaram o ex-juiz da Lava Jato como "traidor" de Bolsonaro, explica Ortellado, "e assim conseguiram sobreviver dispensando o Moro e também outras pessoas do PSL (ex-partido do presidente)".
Por um lado, é mais difícil construir essa narrativa de traição envolvendo figuras das Forças Armadas, justamente pelo papel importante que essa instituição tem no discurso bolsonarista.
"Essa cisão compromete o coração da estratégia discursiva deles (simpatizantes do governo), e vão ter que redesenhar isso. O jeito mais fácil é tratar chefes militares como traidores do povo e do verdadeiro Exército brasileiro, e idealizar o 'soldado insatisfeito'. É um nó que vão ter que desatar."
Por outro lado, explica Ortellado, "a capacidade de sobrevivência do bolsonarismo é muito grande. A gente achava muito difícil ele se desvencilhar sem grandes perdas do lavajatismo, mas ele conseguiu facilmente, de modo praticamente indolor (em termos de popularidade)".
"Então eu esperaria para ver a capacidade dessa resposta que vão articular para ver se ela funciona - porque ela já funcionou diante de perdas mais fundamentais. Me parecia que o lavajatismo era um componente essencial (do bolsonarismo), e ele foi sacrificado sem problemas, não houve prejuízo na aprovação (do presidente). O bolsonarismo mexeu com coisas profundas na sociedade brasileira, algo que a gente ainda está investigando."
Uma coisa que chamou a atenção de Ortellado e sua equipe foi o fato de que a máquina de propaganda bolsonarista nas redes parece ter sido pega de surpresa pela crise com os militares.
"Porque muitas vezes esse movimento, essa máquina de propaganda, está sabendo (com antecedência das rupturas envolvendo o governo). Quando aconteceu com Moro, a resposta de chamá-lo de traidor foi imediata. Agora não. Não sei o que aconteceu, mas deu para ver que a máquina de propaganda foi surpreendida."
Ortellado aponta que a crise com a cúpula militar ocorre em meio, também, a uma "fissura na retórica populista" de Bolsonaro, diante do agravamento da pandemia do novo coronavírus e de embates cada vez mais duros com os governadores dos Estados, que têm implementado medidas de isolamento social.
Em coluna recente no jornal O Globo, Ortellado observou que, em ao menos três ocasiões recentes, o presidente da República disse (em lives ou conversas públicas com simpatizantes) que não pretende adotar políticas de lockdown como "a maioria" pede.
A palavra "maioria" chamou a atenção de Ortellado por não ser comum a Bolsonaro se referir aos adversários com essa palavra.
"É algo muito diferente: o governo Bolsonaro sempre se apresentou como um governo de maioria, porque é algo que faz parte da retórica populista, mesmo que efetivamente nunca tenha sido um governo de maioria (em referência ao fato de que o presidente teve, 55,1% dos votos válidos, mas recebeu o apoio efetivo de 39% do eleitorado em 2018, se levados em conta os votos brancos, nulos e abstenções) e seu projeto nunca tenha sido majoritário do ponto de vista estatístico", diz o pesquisador.
"Mas ele se apresenta assim. Sua capacidade de criar comunhão em torno desse projeto político é da crença, da ilusão de que 'somos uma maioria lutando contra uma minoria' - uma pequena elite corrupta que nessa retórica inclui os governadores, o STF e os meios de comunicação. Acontece que quando ele começa a se referir aos outros como maioria, ele não a representa mais. E acredito que isso não tenha sido de propósito, mas me chamou a atenção essa expressão ter escapado mais de uma vez, sinalizando a dificuldade dele de apresentar essa postura muito radical e negacionista em uma linguagem populista."
Caso confirme-se que a tensão com os militares teve a ver com as dificuldades em lidar com a pandemia, "também mostraria esse enfraquecimento - ele no fundo adotou uma postura (negacionista) e não consegue convencer ninguém de que ela é majoritária. Quando ele diz 'o povo quer trabalhar', as pesquisas mostram que o povo está percebendo a gravidade da situação e quer ficar em casa (em referência uma pesquisa do Datafolha que apontou, em 18 de março, apontando que 71% da população apoia medidas de restrição ao comércio e serviços para controlar o avanço do coronavírus). Fica muito difícil criar uma estratégia retórica populista funcional."
Embora não seja necessário, de fato, ter uma maioria para mobilizar seus apoiadores, é preciso "construir a ilusão da maioria", explica Ortellado.
"As pessoas que estão indo às portas do quartel ou protestar contra o (governador de São Paulo João) Doria precisam estar convencidas de que são a vanguarda de uma maioria, ter essa ilusão de que são porta-vozes de uma maioria. Mas quando as evidências falam mais alto, quando elas estão isoladas na família, que é o que tem acontecido, a ideia de que são uma maioria é difícil de ser sustentada. E acho que essa é uma crise que ele está enfrentando, porque essa aposta não está vingando."
Isso é importante uma vez que a força do discurso é peça central do populismo, em que políticos como Bolsonaro se apoiam, sejam eles de esquerda ou direita.
"De fato esse discurso 'nós contra eles', 'o povo contra as elites' é muito mobilizador - é uma força que, quando você consegue ativá-la por meio do discurso, tem efeitos eleitorais poderosos", prossegue Ortellado.
"E Bolsonaro soube mobilizar isso muito bem nas eleições de 2018, e essa máquina de antagonismo não desligou desde então. Ela está sempre criando antagonismos anti-elite."
Seja de esquerda ou direita, o discurso populista em todo o mundo se sustenta, diz o pesquisador, na ideia de que o poder foi cooptado por outros grupos políticos - "pela alta burocracia, pelos meios de comunicação, pelo mercado financeiro", por exemplo.
É um pouco o que faz Bolsonaro quando diz que "o STF me proibiu de fazer qualquer coisa contra a pandemia" - quando na verdade a Corte Suprema apenas reafirmou a autonomia de Estados e municípios para tomar medidas de isolamento social, mas não isentou o governo federal de suas responsabilidades no tema.
"O (ex-presidente dos EUA Donald) Trump também usava muito a ideia de 'deep state' (Estado profundo), de que ele tinha que fazer uma espécie de luta interna contra o poder, que está alhures, não naquela cadeira em que ele estava sentado", aponta Ortellado.
"O Bolsonaro fez isso: disse que o poder está no STF, nos governadores, na 'globolixo'. Por isso que esse antagonismo anti-elite consegue ser ativado mesmo ele sendo parte da elite política - afinal, ele está sentado no cargo político mais importante. É um discurso da impotência do poder político. E é uma luta infinita. Se a gente pegar um caso muito antigo de populismo, como o venezuelano, (o inimigo) é o 'Imperialismo americano' que nunca acaba. tem sempre um inimigo que nunca vai ser derrotado."