23/06/2021 às 07h12min - Atualizada em 23/06/2021 às 07h12min

O império da afetação

Pandemia de Covid-19 fez mundo entrar numa contramarcha segregadora, num refluxo reacionário e persecutório com cara de onda virtuosa

Guilherme Fiuza
METRÓPOLES
O Brasil nem se escandalizou ao ver senadoresda República maltratarem duas mulheres, duas médicas, duas médicas conceituadas, ao vivo e na cara de todo mundo. Talvez porque uma CPI de mentira conduzida por investigados seja uma forma de licença poética. Um vale-tudo consentido e sancionado pela confederação nacional das vistas grossas. Mas seria bom demais se o problema fosse só esse.
 
Os tais senadores que protagonizaram o show de brutalidade contra médicas são os atuais reis das manchetes nacionais – não nas páginas de escândalos, mas nas pautas de empatia, ciência e salvação de vidas. Contando ninguém acredita. As duas médicas agredidas têm amplos serviços prestados em socorro às vítimas da pandemia. Mas você não viu uma grita da classe médica contra essa afronta. Aí começamos a enxergar o problema maior.
 
Esse problemão precede pandemia, precede Bolsonaro. O salto tecnológico que conectou instantaneamente o mundo inteiro no século 21 produziu um efeito colateral grave. Os nerds bilionários que protagonizam essa revolução democrática – sim, a internet e as redes sociais são uma revolução democrática – tiveram outra ideia menos pródiga. Porque eles são bons, mas são nerds. E a molecagem foi jogar na corrente sanguínea das sociedades, através dessa fabulosa vascularização digital, o vírus da grandeza descartável, do heroísmo de butique.
 
Foi um sucesso. Como um bando de pré-adolescentes loucos por uma frase que lhes tornassem grandes, a humanidade se lambuzou inteira de demagogia. Mas com um detalhe: para afetar uma grandeza que não tem, você precisa diminuir alguém.
E assim o mundo foi entrando docemente numa contramarcha segregadora, num refluxo reacionário e persecutório com cara de onda virtuosa. Escrevam aí o que os historiadores do futuro vão confirmar tranquilamente: estamos num dos piores ciclos moralistas da história contemporânea. E é um dos piores por uma razão singela: o moralismo é dissimulado. Moralista careta e de cara feia conheceram seus avós. Hoje são todos uma fofura, com toda a estética descolada que está aí à venda, ou melhor, de graça, ao alcance de um clique.
 
Por isso até figuras arcaicas com doutorado em boçalidade podem ressurgir como flores primaveris da empatia. Agredir mulheres está liberado se você tem a cartilha certa no bolso. Duvida?
Então passe das médicas aviltadas na CPI para uma praça, calçada ou praia à sua escolha. Dê uma paradinha, por exemplo, no posto salva-mar onde o prefeito do Rio de Janeiro  pintou a palavra “afeto”. Perto dali uma ciclista foi barbarizada pela guarda desse mesmo prefeito afetivo. Sob o pretexto de segurança sanitária (a cartilha no bolso), meia-dúzia de animais armados cercaram uma mulher e arrastaram-na violentamente para dentro de um camburão. Nenhuma criatura na comunidade científica planetária seria capaz de atestar o risco à saúde representado por aquela ciclista, mas quem é você para exigir ciência no império da afetação?
 
 
Isso aconteceu, mais uma vez, na cara de todo mundo. Como inúmeras agressões idênticas a mulheres (e a homens também, mas estamos concentrando na banda mais covarde da caricatura) – a mulher algemada de vadalizada por guardas na praça de Araraquara, a trabalhadora nas ruas de Goiânia, as banhistas em Noterói, todas arrastadas, algemadas e barbarizadas enquanto os humanistas modernos ruminavam slogans empáticos no zoom. Que fim levou a coragem?
Basta olhar o governador mascarada de cara limpa e papo pro ar na muvuquinha de um hotel carioca  e você pode presumir onde está a resposta.
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