O governo Lula entra no terceiro mês ainda sem saber como vai aprovar seus projetos no Congresso. A “frente ampla” reunida para a eleição e o loteamento de ministérios e cargos para políticos não se mostraram, até agora, suficientes para dar ao Executivo uma base que lhe dê um mínimo de conforto no relacionamento com o Legislativo.
A franqueza do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), em dizer em público que o governo ainda não tem apoio nem para aprovar textos que precisam de maioria simples assombra os articuladores políticos do Palácio do Planalto. As dificuldades são tão nítidas que ninguém se atreve a prever quando temas importantes vão começar a ser votados.
A definição do comando das comissões permanentes na Câmara, após semanas de impasse, dá um pequeno refresco para o governo, que conseguiu emplacar o deputado Rui Falcão (PT-SP) na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), considerada a mais importante da Casa. A eleição da deputada bolsonarista Bia Kicis (PL-DF) para presidir a Comissão de Fiscalização Financeira e Controle, porém, é uma mostra da força da oposição nessa disputa.
O PL, do ex-presidente Jair Bolsonaro, também venceu um embate com o União Brasil e colocará o deputado Luiz Carlos Motta (PL-SP) na relatoria do Orçamento do ano que vem, o que pode ser outra pedra no sapato do governo Lula.
Compasso de espera
Apesar das óbvias dificuldades para compor maioria no Congresso, o governo federal ainda conta com algum tempo para mudar o cenário adverso, pois as principais medidas provisórias editadas pelo Executivo só perdem validade no fim de abril e os projetos prioritários do governo, que são o novo arcabouço fiscal e a reforma tributária, sequer foram protocolados para tramitar no Legislativo.
Para tirar as pedras do caminho, porém, a articulação de Lula terá de flexibilizar a maneira de se relacionar com os parlamentares, avalia o cientista político Leonardo Barreto, diretor da consultoria Vector.
O especialista afirma que o Congresso ampliou suas ambições nos últimos anos, sobretudo sob Bolsonaro, e quer participar da formulação das ideias, não apenas recebê-las prontas do Executivo.
“O governo Lula ainda tenta reviver a fórmula antiga, dos mandatos anteriores do PT, em que o Executivo formula tudo e o Congresso adere em troca de recursos e cargos, mas líderes parlamentares que começaram a formular políticas públicas não querem mais abrir mão disso”, afirma ele, que aponta Arthur Lira como o dono da agenda neste momento e explica a situação com uma alegoria:
“Eleito presidente e baseado em sua experiência anterior, o Lula chega em um restaurante e quer sentar na melhor mesa. Mas essa mesa já está ocupada”, afirma Barreto.
Governo Bolsonaro também sofreu
A gestão Bolsonaro também começou com dificuldades de articulação com o Congresso e viu o primeiro plano do ex-presidente, de conversar com bancadas temáticas (como a do agro ou os evangélicos) ao invés de negociar com partidos, naufragar.
Em 2019, com a Câmara sob a presidência do ex-deputado Rodrigo Maia (então no DEM, hoje no PSDB), o Congresso se acostumou a sentar à mesa e escolher quais pautas seriam as prioritárias. Nisso, a reforma da previdência foi abraçada pelo Parlamento e acabou sendo aprovada, enquanto o chamado pacote anticrime, menina dos olhos do então “superministro” Sergio Moro, foi jogada para escanteio.
“A pauta não é mais exclusividade do governo, apesar de estarmos oficialmente num presidencialismo. Agora, e desde a legislatura passada, o assunto precisa ter aderência entre diversos líderes para ir adiante”, analisa o cientista político Rui Tavares Maluf, professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fesp-SP).
“E o exemplo disso no momento atual é a reforma tributária, que, apesar das resistências setoriais, tem apoio dos formadores de opinião e boa vontade dos parlamentares, inclusive da oposição. Tem, portanto, condições de seguir adiante. Já pautas da chamada agenda de costumes, por exemplo, eu não vejo como possam ganhar destaque no atual cenário”, complementa Tavares Maluf.
O cientista político André Cesar, da Hold Assessoria Parlamentar, acredita que o Congresso vai aprovar uma reforma tributária que o governo Lula poderá chamar de sua, mas afirma que a tramitação do texto será turbulenta.
“Hoje todos reconhecem a necessidade dessa reforma. Nunca tivemos, desde a redemocratização, condições políticas tão favoráveis para fazê-la avançar, mas na prática o debate vai enfrentar muita resistência de setores que perceberem que podem perder algo em termos de arrecadação ou possam vir a pagar mais impostos”, afirma ele, que vê o governo ainda distante de uma proposta que possa alcançar algo próximo do consenso.
Designado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, para tratar do tema, o secretário especial da reforma tributária, Bernard Appy, prefere avançar em algo na linha de duas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) que já avançaram algumas casas na tramitação no Legislativo, as PECs 45 e 110.
Para André César, porém, esses textos não são bem aceitos por muitos setores na sociedade e no Congresso, como ficou evidente no climão que se criou na participação de Haddad em evento da Frente Nacional de Prefeitos, na última segunda-feira (13/3). Os prefeitos acreditam que as ideias defendidas pelo governo federal vão lhes tirar controle sobre a arrecadação municipal e, potencialmente, diminuir os recursos que caem direto nos cofres das prefeituras.
“Ou o governo percebe que precisa negociar muito mais, se abrir ao diálogo, ou pode ver a aprovação de um puxadinho, não de uma verdadeira reforma”, afirma o especialista, que acredita ainda que a votação do novo arcabouço fiscal, que o governo vai propor para substituir a regra do teto de gastos, deve acontecer primeiro e ser o primeiro grande teste da gestão de Lula com a atual legislatura no Congresso. “Ao contrário da reforma tributária, que é uma PEC e precisa de dois terços dos votos, o arcabouço vira em forma de Projeto de Lei e precisa de maioria simples. É mais fácil”, conclui André César.