Hoje, presidente, ao que tudo indica, pensa o leigo que o Senado da República é o senador Renan Calheiros. Explico. Se diz que sem ele – e a esta altura está sendo tomado como um salvador da pátria amada – não teremos a aprovação de medidas emergenciais visando combater o mal maior, que é a crise econômica e financeira a provocar desalento, a provocar ausência de esperança aos jovens que são projetados, colocados nesse mercado desequilibrado de trabalho. Quanto poder! Presidente, faço justiça ao senador Renan Calheiros. Faço justiça ao dizer que ele não me chamou de ‘juizeco’. Tempos estranhos, presidente, os vivenciados nesta sofrida República. Mas vamos, presidente, feitas estas observações, que ficarão registradas, vamos, presidente, ao voto.”
Autor da liminar que 48 horas antes determinara a saída do senador réu Renan Calheiros da presidência do Senado, naquele início de tarde de quarta-feira a verve do ministro Marco Aurélio Mello estava afiada. Ele começava a ler, no plenário do Supremo Tribunal Federal, seu relatório para o referendo daquela tarde, no qual nove ministros – Gilmar Mendes estava no exterior e Luís Roberto Barroso se declarara impedido – decidiriam se a liminar seria mantida. Provocado por um pedido do partido Rede Sustentabilidade, Marco Aurélio decidira monocraticamente que Renan deveria ser afastado da presidência do Senado – uma decisão polêmica para muitos juristas. Seu entendimento unia duas premissas: no dia 1º, Renan tornara-se réu, acusado de peculato (desvio de dinheiro público), em um inquérito que corre no Supremo; um mês antes, o Supremo votava se réus podem ou não ocupar cargos na linha de sucessão da Presidência da República – e o placar marcava 6 a 0 a favor do impedimento. A peculiaridade é que o julgamento da segunda questão permanece inacabado, suspenso por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli. Chegara a hora de Marco Aurélio defender seu ponto de vista e saber se os colegas o acompanhariam.
Àquela altura, a crise estava instalada. Certo da vitória, do outro lado da praça Renan recebia tranquilamente sindicalistas na sala da presidência do Senado. No dia anterior, ele se recusara a receber o oficial de justiça que fora notificá-lo da decisão de Marco Aurélio. Mantivera-se no cargo na base do esconde-esconde. Antes de Marco Aurélio e os outros oito ministros sentarem-se com suas capas pretas nas cadeiras de couro amarelo do plenário, o resultado estava praticamente dado. Seus colegas passaram o dia anterior em conversas com senadores e receberam recados do Palácio do Planalto. Marco Aurélio ficou de fora da reunião do início da tarde, na qual a presidente Cármen Lúcia recebeu o vice-presidente do Senado, Jorge Viana, do PT do Acre, para discutir a crise, e convidou os ministros a participar. Renan venceria, em nome de um acordo pela “estabilidade”. Marco Aurélio seria vencido. Mas demonstrava decisão em deixar sua divergência gravada na história. Durante 39 minutos, ressaltou a situação e a qualificação de Renan. “Trago para referendo a decisão mediante a qual implementei a medida acauteladora, presentes a urgência, a relevância do pedido e o comprometimento da segurança jurídica com a manutenção na presidência do Senado Federal de cidadão contra o qual há denúncia em processo-crime recebida pelo Supremo e, portanto, cidadão senador que guarda a condição de réu”, disse.
Marco Aurélio continuava a leitura, com seu estilo peculiar de dicção, pelo qual a letra “l” final de algumas palavras se transforma em “á” – assim, “federal” vira “federá”. “Surge situação cuja gravidade impõe a correção de rumos mediante a atuação firme, com desassombro, do Tribunal que ostenta a condição de última trincheira da cidadania. Em quadra estranha, na qual valores estão invertidos e a lucidez suplantada, inexiste outro caminho, senão a afirmação passo a passo do prumado da Carta da República. No julgamento de fundo desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, iniciado em 3 de dezembro de 2016, assentei as balizas da questão em jogo, ressaltando a impropriedade ante a sistemática do texto maior, de réu ocupar cargo integrado à linha de substituição do chefe do Poder Executivo”, disse.
Não é incomum que as liminares de Marco Aurélio sejam revertidas, ou mesmo que seu voto guarde um entendimento particular
Ser o voto vencido é uma marca dos 26 anos de Marco Aurélio no Supremo – ele é o segundo ministro mais antigo, atrás apenas de Celso de Mello. Não é incomum que suas liminares sejam revertidas, que ele figure como o único a votar de certa maneira ou mesmo que seu voto guarde um entendimento particular. Em abril, ele concedeu liminar que obrigava o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, do mesmo PMDB de Renan, a instalar um processo de impeachment do então vice-presidente da República, Michel Temer, também do PMDB. Seu ponto de vista foi derrotado no plenário. Na quarta-feira, Marco Aurélio se lembrou de Eduardo Cunha em outro contexto, quando em maio seu colega Teori Zavascki decidiu – também monocraticamente – que o presidente da Câmara deveria sair. Na ocasião, o Supremo referendou a decisão.
Era hora, portanto, de o Supremo firmar sua autoridade. “O Supremo não pode despedir-se do dever de tornar prevalescente a ótica já adotada”, disse. “A Constituição é uma, sendo a lei maior do povo brasileiro, a todos submetendo indistintamente. Apanha a situação do presidente do Senado, como apanhou a do presidente da Câmara. Fora isso, é distinguir sem fundamento fático, sem fundamento socialmente aceitável, sem fundamento constitucional. É reescrever casuisticamente a Constituição Federal, fazendo-o em benefício de certo réu, hoje a presidir o Senado da República e a reunião conjunta das duas Casas, o Congresso Nacional, guardando a condição de, a qualquer momento, ausente o presidente da República, ou do presidente da Câmara, tomar assento como chefe de governo, chefe de Estado, em verdadeiro deboche institucional, o senador Renan Calheiros”, disse.
“Ao fim, implica a desmoralização ímpar do Supremo. O princípio constitucional passa a ser um nada jurídico, a variar conforme o cidadão que esteja na cadeira, tendo surtido efeitos relativamente ao presidente da Câmara, deputado Eduardo Cunha, como surtiu na dicção do ministro Teori Zavascki, cumprida antes do referendo, subscrita por todos os ministros que hoje integram o Supremo, mas não para o senador Renan Calheiros. A que custo será implementada essa blindagem pessoal, inusitada e desmoralizante em termos de pronunciamento judicial, é a pergunta que faço”, disse Marco Aurélio. “Com a palavra, o colegiado, os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello e Cármen Lúcia, Vossa Excelência, a presidente. Que cada qual, senhor de uma biografia, senhor da busca da credibilidade, do fortalecimento do Supremo como instituição maior, autor da história a constar dos anais do Tribunal, cumpra o dever decorrente da cadeira ocupada, prestando contas à história, às gerações futuras, implacáveis testemunhas.” Ao final das duas horas seguintes, os colegas decidiram que Renan fica no cargo, mesmo sendo réu, mas não poderá substitutir Temer na Presidência da República – interpretação que Marco Aurélio relacionou ao “famoso jeitinho brasileiro, a meia-sola constitucional, um desprezo inexcedível ao previsto”.