Aos 90, Ives Gandra encara processo na OAB e é chamado de “golpista” por Moraes

Um dos maiores juristas da história do país e consultor para a elaboração da Constituição de 1988, Ives Gandra Martins, 90 anos, enfrenta uma perseguição inédita em sua trajetória.

27/05/2025 07h23 - Atualizado há 2 dias
Aos 90, Ives Gandra encara processo na OAB e é chamado de “golpista” por Moraes
O jurista Ives Gandra enfrenta processo na OAB por causa de sua opinião sobre o artigo 142 da Constituição. (Foto: Marco Cardelino/Alesp)

Desde 2023, ele é alvo de um processo disciplinar no âmbito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), movido pela Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH).

Além disso, na semana passada, o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), chamou indiretamente Gandra de "golpista" durante julgamento na Primeira Turma. O motivo: uma interpretação do jurista sobre o papel das Forças Armadas na Constituição.

Para Gandra, a leitura do artigo 142 da Constituição permite concluir que as Forças Armadas têm, entre suas funções, a de atuar como poder moderador em conflitos entre os Três Poderes, desde que convocadas por um deles. Ele sustenta que o dispositivo não limita a atuação militar à defesa externa ou à garantia da lei e da ordem, mas prevê também a garantia dos poderes constitucionais, com mediação em caso de impasses.

Essa tese, segundo o próprio jurista, não se refere à possibilidade de intervenção militar autônoma, nem implica ruptura democrática. Ao contrário, exige provocação de um dos Poderes e não autoriza ações fora dos marcos legais, mas somente um papel temporário de moderação exercido pelos militares.

A posição de Gandra, ainda que controversa entre constitucionalistas, é pública desde os anos 1980 e consta de pareceres, artigos e livros acadêmicos. Em 2022, após a derrota do ex-presidente Jair Bolsonaro nas eleições, ela foi instrumentalizada por grupos políticos que, em alguns casos, interpretaram de forma distorcida o que Gandra havia dito.

O processo que corre no Tribunal de Ética e Disciplina da seção de São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP) tinha sido arquivado em fevereiro de 2025, mas foi retomado na semana passada, depois que as duas entidades entraram com um recurso. Um dos conselheiros do tribunal da OAB – Ivan Rafael Bueno, de acordo com a CNN – pediu vista do caso por um aspecto técnico, o que deixou a decisão em suspenso por tempo indefinido.

Além de enfrentar processo na OAB, Gandra foi alvo, também na semana passada, de um ataque indireto de Alexandre de Moraes. "É sempre bom repetir: o artigo 142 não tem absolutamente nada a ver com o poder moderador, e os juristas que assim escrevem não são juristas, são golpistas", afirmou Moraes em julgamento da PET 12.100, na Primeira Turma do STF.

A ideia das Forças Armadas como "poder moderador" em casos de impasse é exatamente a posição de Ives Gandra. "Minha interpretação, há 31 anos, manifestada para alunos da universidade, em livros, conferências, artigos jornalísticos, rádio e televisão é que no capítulo para a defesa da democracia, do Estado e de suas instituições, se um Poder sentir-se atropelado por outro, poderá solicitar às Forças Armadas que ajam como Poder Moderador para repor, naquele ponto, a Lei e a Ordem, se esta, realmente, tiver sido ferida pelo Poder em conflito com o postulante", afirmou Gandra em 2020 em artigo para o site Conjur.

Nas redes sociais, alguns juristas consideraram que a declaração de Moraes tinha alvo certo: o próprio Ives Gandra. À Gazeta do Povo, Alessandro Chiarottino, doutor em Direito Constitucional pela USP, reiterou essa visão.

"Muito provavelmente Moraes se dirige ao doutor Ives Gandra, pois, pelo menos do ponto de vista midiático, não me lembro de outro advogado, outro jurista, que tenha exprimido uma opinião semelhante quando nós estávamos às voltas com a interpretação do artigo 142", diz.

Para ele, a perseguição a Ives Gandra é emblemática do momento que vive o país em relação às garantias constitucionais. "Este caso é uma demonstração cabal de quanto nós nos afastamos dos princípios da Constituição de 1988. É evidente que nem advogado nem qualquer outra pessoa poderia ser punida por discordar do nosso sistema constitucional ou discordar da interpretação da Constituição, como aqui é o caso", comenta.

Adriano Soares da Costa, ex-juiz de direito e especialista em Direito Eleitoral, afirma que a fala do ministro Alexandre de Moraes "é uma lamentável manifestação da Corte que tem a função de proteger, resguardar e aplicar a Constituição". "Adestrar advogados pareceristas a dizer o que convém ao poder é descrer na democracia, na liberdade de expressão e nas prerrogativas da advocacia. Penso em Sobral Pinto, advogado que, por suas convicções, defendeu presos políticos e atuou consoante as suas prerrogativas, mesmo em um regime de exceção. Agora, em nome de uma democracia militante, nem a advocacia e a liberdade de pensamento profissional estão a salvo", diz.

Sobre o processo movido pelas duas entidades, Soares da Costa diz que ele deveria ter sido rejeitado pela OAB de imediato. "Professor Ives Gandra é um exemplo. Lamentável que a essa altura da vida sofra perseguição e seja colocado em uma situação que deveria ser rechaçada pela OAB-SP desde o início, liminarmente. Tempos de inversão de valores", afirma. "É um grande homem e um jurista que formou gerações. As suas manifestações jurídicas são conforme ao Direito, protegidas pela Constituição, porque feitas em pareceres jurídicos e manifestações públicas com caráter de professor. Logo, dentro dos limites amplos da liberdade de expressão e pensamento", acrescenta.

Processo contra Ives Gandra fere liberdade de expressão e de cátedra, dizem juristas

Para diversos juristas consultados pela Gazeta do Povo, o processo contra Ives Gandra é um sinal da decadência da liberdade de expressão no Brasil.

"O mestre Ives Gandra é merecedor, pela história de vida, do maior respeito. Admitamos a liberdade de expressão, medula do Estado Democrático de Direito. Certamente, a denúncia será fulminada. Preocupemo-nos com as mazelas desta sofrida República que tanto nos envergonham", afirma o ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello.

Janaina Paschoal, vereadora de São Paulo (PP-SP) e doutora em Direito Penal pela USP, recorda que "o próprio Supremo Tribunal Federal, inúmeras vezes, garantiu a liberdade de expressão, de manifestação, até mesmo de juristas, de formadores de opinião que defendem, por exemplo, legalizar a venda de drogas, legalizar aborto de forma ampla e irrestrita". "Então, ainda que a leitura do professor estivesse errada, ele estaria resguardado pela liberdade de expressão e manifestação e pela liberdade de cátedra", diz. "Esse precedente gera um risco para todos os professores universitários, especificamente de Direito, mas também dos demais", complementa.

Chiarottino destaca que "não existe a obrigação de concordância com uma interpretação oficial da Constituição". "Esta é mais uma demonstração impressionante de como nós estamos longe daquilo que lá atrás pretendíamos ser. A Constituição de 1988 tentou implementar no Brasil uma democracia liberal – apesar do conteúdo social da Constituição, esse foi o objetivo. E agora nós nos vemos com este tipo de coisa, como se cogitar que uma interpretação diferente seja algo passível de incriminação. Realmente não há cabimento", critica.

Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), destacou em carta aberta que "a ideia de associar o dr. Ives Gandra a qualquer movimento antidemocrático, como um 'golpe', é absolutamente descabida". "Dr. Ives comenta a Constituição de 1988 desde que ela foi promulgada, sempre com base técnica, serenidade e compromisso com o Estado de Direito. O artigo 142, cuja interpretação tem gerado polêmica, é objeto de análise dele e de outros constitucionalistas há décadas. Divergência interpretativa não é crime – é sinal de vitalidade democrática", observou.

Vieira afirmou ainda que "transformar o debate jurídico em perseguição pessoal, ainda mais contra alguém com 90 anos de vida dedicados à causa da justiça, do bem e da verdade, não apenas enfraquece a liberdade de expressão e a liberdade política no Brasil, como também ofende a própria história constitucional brasileira". "O que está em jogo não é a opinião de um jurista, mas o direito de todo jurista, escritor e professor de ter opinião", complementou.

Angela Gandra, filha de Ives Gandra e secretária Municipal de Relações Internacionais de São Paulo, relata que seu pai leva o processo na OAB "com serenidade" e sem se perturbar, e que se incomoda mais com o que ocorre hoje no Judiciário brasileiro.

Dói muito mais nele a situação do país. Vejo que ele sofre com isso, de ver a situação do Estado Democrático de Direito no país, tudo isso, do que propriamente o que afeta diretamente a ele em si", afirma Angela. "Vejo que o papai vive diante de Deus e da consciência dele. Não existe o ridículo para quem tentou fazer o melhor. É impressionante ver a serenidade dele. Ele só fica triste quando ele vê o país desse jeito. Aí ele fala forte, porque ele não se conforma com o nível de injustiça a que a gente chegou."


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